Espantalhos da política

Gaudêncio Torquato

A crise do PMDB, agora aberta ao crivo da opinião pública, expõe a feição frankensteiniana do partido, que é um amontoado de interesses de grupos e castas, expressa a própria debilidade da estrutura política brasileira e ainda revela as relações nem sempre muito transparentes entre o poder público e o Poder Judiciário, situação que se expressa na guerra das liminares. Ao se posicionarem de antemão contra eventual decisão para que o partido assuma posição de independência e se afaste dos cargos ministeriais, os peemedebistas governistas colocam na lata de lixo o estatuto partidário, se afundam na lama do fisiologismo e passam o recibo de mercadores da política de clientela.

Uma rápida reflexão sobre esse conturbado momento em que vive o PMDB faz recordar as razões que têm contribuído para a deterioração da classe política, fato que vem se intensificando, não apenas no Brasil, desde a segunda metade do século XIX. Os partidos de massas, nascidos no bojo da revolução industrial, interpretaram, em seu início, lutas e conquistas de conglomerados operários e de classes médias. Ao longo do século passado, porém, foram perdendo força. Modificando atitudes e, deixando de lado antigos ideários por força do desvanecimento dos antagonismos de classes, assumiram o perfil de catch-all parties, algo como ajuntamentos amorfos que agarram tudo que for possível. Certas organizações, particularmente na Europa, evoluíram na direção de compromissos com parcelas da sociedade, algumas se autodenominando "partidos de eleitores", cuja característica principal ainda é o voto conferido ao ideário, e não ao ator individual. No Brasil, a feição partidária, plasmada pela alternação de ciclos democráticos e autoritários, e circunscrita a um sistema político debilitado pela ausência de autonomia, coerência e solidez doutrinária, apresenta-se mais disforme que a média dos países politicamente desenvolvidos.

Mesmo assim, os nossos atuais partidos políticos possuíam, há 25 anos, cara facilmente reconhecida. Saídos do forno autoritário, cujo fogo começou a arrefecer nos idos 1979, quando a Arena e o MDB (criados em 1965) deram lugar ao PDS, ao PMDB, ao PTB, ao PDT e ao PT, os traços de cada um eram perfeitamente identificados pelos núcleos sociais que representavam: direita, centro-esquerda de resistência democrática, trabalhismo getulista/brizolismo e núcleos sindicalistas e intelectuais integrantes de uma banda mais à esquerda do arco ideológico. Do ajuntamento inicial que abriu o atual ciclo democrático, todos, em maior ou menor intensidade, desfiguraram-se, inclusive o PT, que chegou ao poder em trajes de vestal e hoje é a locomotiva do trem fisiológico que arrasta desfigurados partidos da base governista. Nesse ponto, cabe inferir que o movimento de rebeldia no seio do PMDB é a mais corajosa iniciativa, desde os tempos heróicos de Ulysses Guimarães, para a oxigenação do sangue de barata que transforma o partido em animal sem vértebra e sem músculos.

Quer voltar a ser um partido. Mas o que é um partido? É parcela de representação do pensamento social. Como tal, estrutura-se de baixo para cima, representando demandas das bases. As cúpulas dirigentes são apenas instrumentos para fazer valer a vontade social, fonte primeira de legitimação do poder. Por isso, boicotar a decisão majoritária pela independência de um partido constitui traição aos compromissos assumidos com eleitores. Ademais, não se sustenta o argumento de que um elo a menos na corrente situacionista ameaça a governabilidade. A ser correta a hipótese, siglas governistas deveriam permanecer engessadas ao campo majoritário, abdicando da posição de astros centrais do espectro político. Independentes e oposicionistas não têm a obrigação de votar sempre contra o governo. Nas democracias liberais, o antagonismo entre partidos pressupõe também concordância de pontos de vista, como ocorre entre os partidos democrata e republicano, nos Estados Unidos, e o trabalhista e o conservador, na Inglaterra.

É natural que os núcleos partidários procurem se recompor no ano mais decisivo da gestão governamental, que é o terceiro. Aí se darão os desdobramentos – positivos/negativos – da gestão e as conseqüentes tomadas de decisão partidárias. Mais ainda, quando o espectro político está tomado por tons assemelhados. Vejamos. Se o leque de alianças do PT vai da centro-esquerda à direita, onde estão sediados PL, PTB e PP, a formação entre PSDB e PFL ocupa praticamente a mesma esfera. Divisa-se um amplo espaço no meio urbano da sociedade para a agregação de classes médias, ajuntamentos de pequenos e médios produtores, comerciantes e profissionais liberais, cujos interesses começam pela afinação da orquestra fiscal-tributária, passando pelo diapasão da segurança. Se o PMDB pretende renascer das cinzas, como Fênix, pode começar fazendo barulho nessas duas amplas frentes de inquietação social. Há, ainda, um núcleo partidário bastante disponível, onde se vê o PDT à procura de um canto mais firme, o PPS exibindo desconforto junto ao PT e o PSB parecendo perdido.

Resta ao PT, partido majoritário, fazer tudo para impedir a reforma política. Quanto mais deixar abertas as comportas partidárias, no caso, a manutenção das regras do jogo – infidelidade partidária, votação em listas abertas, domínio econômico nas campanhas, alianças espúrias – melhor para o projeto de reeleição de Lula. Quanto mais frágil e instável a estrutura política, melhor para quem detém poder de fogo. Ocorre que o País alcança um avançado grau organizativo, fato visível na miríade de entidades intermediárias que promovem a dinâmica social. Diante desse quadro, a decisão do PMDB de se afastar do governo pode ser uma pequena faísca que, mais cedo ou mais tarde, chegará ao restolho da política, queimando outros partidos amorfos, insípidos, incolores e inodoros que mais parecem espantalhos de pasto.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.