Transferência prisional e vínculo familiar

 

            A decisão abaixo é relativamente incomum, embora a legislação correspondente seja bastante clara. Veja-se a ementa:

  Habeas Corpus. Pedido de transferência de estabelecimento prisional. Possibilidade. Vínculo familiar e disponibilidade de vaga. 3. Constrangimento ilegal caracterizado. 4. Ordem concedida.

(STF – HC 105175/SP – 2ª T. – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJe de 1º.8.11)

  

Seguem os fundamentos do voto do eminente Ministro relator:

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): Conforme relatado, a defesa pugna pela transferência do paciente para estabelecimento prisional localizado na comarca de Dourados/MS, próximo de seus familiares. Após as observações feitas pelo advogado por ocasião da sustentação oral, bem como as pertinentes ponderações formuladas pelo Min. Celso de Mello, entendo que o caso deve ser analisado sob outra ótica, a comportar a concessão da ordem. Conforme consta dos autos, o paciente, nascido na cidade de Ponta Porã/MS, foi condenado à pena de 25 anos e 10 meses de reclusão por infração aos arts. 12, 13, 14 e 18, I e III, todos da Lei 6.368/1976; arts. 289, § 1º, e 334, ambos do CP; e art. 10 da Lei 9.437/1997. A defesa pleiteou ao Juízo da Vara de Execuções Penais da Comarca de Avaré/SP a transferência do sentenciado da Penitenciária Orlando Brando Filinto, na cidade de Iaras/SP, para a Penitenciária Harry Amorim Costa, na cidade de Dourados/MS. O Juízo indeferiu o pedido nos seguintes termos: ‘O pedido merece ser indeferido. Pese embora os argumentos trazidos pela defesa, inexiste lei que assegure ao sentenciado o direito de remoção para presídio da cidade em que moram seus parentes. O que a lei lhe garante, dentro do possível, entre outros direitos, é a visita do cônjuge, companheira e parentes, porém dada a distância entre o presídio e a residência dos parentes tal ato se torna oneroso. Porém, isso não pode ser traduzido como constrangimento ilegal. Se é, em termos de ideal penitenciário, desejável que o preso cumpra a pena corporal em seu meio social e próximo dos seus, embora tenha cometido o crime em outra unidade federativa, não é menos certo, também, que, por respeitável princípio, a reprimenda aflitiva deve ser cumprida onde o delito se consumou e cuja comunidade foi afrontada pelo ilícito. Ademais, o condenado, não tem direito líquido e certo de escolher em qual presídio de sua preferência, deverá cumprir a pena imposta. A opção está subordinada aos interesses administrativos. A Lei de Execução Penal, cujo artigo 86 e parágrafos disciplinam a fixação do preso, estabelecendo a faculdade (expressa pela locução verbal podem ser) de sua remoção, mas quando atenda ao interesse da segurança pública ou do próprio condenado. Não se reconhece, pois, um direito à escolha da prisão, tanto que ele não é elencado pelo artigo 41, mas uma simples expectativa do condenado e vinculada à harmonização simultânea e concorrente dos interesses da Justiça e do sentenciado. […] INDEFIRO, portanto, por tais razões, o pedido formulado pelo sentenciado ELIVANDER MAIDANA DE OLIVEIRA’. Inconformada, a defesa pugnou pela transferência carcerária por meio de permuta. O Juízo da Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente/SP, adotando parecer do Parquet estadual, indeferiu o pedido: ‘O sentenciado ELIVANDER MAIDANA DE OLIVEIRA integra uma poderosa quadrilha de tráfico internacional de substância entorpecente, de forma que sua segregação em presídios distantes do seu local de origem atende ao interesse estatal de melhor reprimir o aludido ilícito. Como bem frisou o Juízo de Conhecimento: ‘…a atividade de importação proibida de entorpecentes é um dos maiores males que atentam contra a população brasileira, ao lado da violência em geral, da corrupção e dos crimes financeiros…’ (fls. 66 dos autos principais). Como se não bastasse tal fato, ANTONIO JULIO DA SILVA, que pretende se remover em permuta com o sentenciado, é pessoa de altíssima periculosidade, pelo que se depreende dos documentos de fls. 27/28. Assim, em face dos efeitos deletérios da aludida pretensão, opino pelo indeferimento do pedido’.

Contra essa decisão, a defesa interpôs agravo em execução no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, por unanimidade, negou provimento ao recurso, com os seguintes fundamentos: ‘(…) Adota-se o parecer da douta Procuradoria, cujo trecho segue reproduzido (fls.64/65): ‘Por outra banda, o pedido não poderia ser atendido nem que fosse em termos de ‘ideal penitenciário’, pois o agravante não comprovou, com o mínimo de suficiência, que tivesse efetivamente residência e vínculos familiares expressivos no longínquo lugar para onde pretende a transferência. Note-se que e para demonstrar residência em Ponta Porã o

agravante exibiu uma conta de energia elétrica que não foi paga, com vencimento no dia 25 de outubro de 2003, da Rua Baltazar Saldanha nº 1.281 (fl.23). Todavia, ele mesmo juntou cópia da certidão de nascimento de sua filha Emilly, cujo registro foi lavrado por sua companheira em 4 de fevereiro de 2003. Nessa data a mulher declarou que residia na Rua Cladomiro Novaes nº 460 (fl.16, in fine).

A genitora do agravante, por sua vez, tem conta de água na Rua Arapongas n° 237 (fl.21), em Ponta Porã, com vencimento em 9 de maio de 2003, mas apresentou atestado médico datado de 20 de março de 200 relacionado ao tratamento efetuado em hospital que fica em Pedro Juan

Caballero, no Paraguai (fl.21)’. Com efeito, em observância aos critérios dispostos no art. 86 da Lei de Execução Penal, ressalto que a transferência para outra unidade prisional não representa direito público subjetivo do condenado, irrecusável pela administração judiciária. (…) Para concedê-la ou recusá-la, o juiz deve levar em conta, não apenas as conveniências pessoais e familiares do preso, mas, também, os da administração pública, sobretudo quando relacionadas com o efetivo cumprimento da pena. (HC 71.076/GO, rel. Min. Sydney Sanches, Primeira Turma, DJ 6.5.1994). Contudo, da leitura dos atos judiciais proferidos nas instâncias ordinárias, constato que não há, em momento algum, a indicação de fatos concretos que justifiquem o indeferimento do pedido da defesa de transferência. As alegações referentes à periculosidade do paciente, bem como a suposta ameaça à segurança pública, mostram-se flagrantemente genéricas, incapazes de impedir-lhe a remoção para penitenciária da comarca de Dourados/MS. Ademais, bem compulsado os autos, verifico que a defesa demonstrou a boa conduta carcerária do paciente (atestado n. 520/2003-CSD), a existência de vínculo familiar em Mato Grosso (certidões de nascimento do paciente e de suas filhas, as quais registram os nascimentos na cidade de Ponta Porã/MS, entre outros) e a disponibilidade de vaga na Penitenciária de Segurança Máxima de Harry Amorin Costa, em Dourados/MS (Ofício n. 1436/2003), o que lhe permitirá uma melhor ressocialização e o exercício do direito à assistência familiar.

Por oportuno, confira teor do ofício do Juízo de Execuções Penais da Comarca de Dourados/MS, o qual, em resposta a pedido formulado pela defesa, deferiu uma vaga na Penitenciária Harry Amorim Costa ao paciente: (…) ‘Prezado Senhor, Através do presente comunico a Vossa Excelência que defiro uma vaga na Penitenciária Harry Amorim Costa local, para o preso ELIVANDER MAIDANA DE OLIVEIRA, brasileiro, casado, natural de Ponta Porã/MS, filho de Marino Oliveira Pereira e Luiza Maidana Oliveira, atualmente recolhido na Penitenciária de IARAS, Rodovia Castelo Branco, Km 383, São Paulo/SP, sendo ele condenado a um total de 25 (vinte e cinco) anos e dez meses de reclusão a ser cumprido no regime fechado. (…)’. Ressalto, à luz das informações contidas nos autos, que a Penitenciária Harry Amorim Costa, à qual o paciente pretende ser removido, dista apenas 100 quilômetros de Ponta Porã, sua cidade natal e onde residem a mãe, esposa e filhas. Assim, para fins de ressocialização é mister que o preso mantenha contato com a família. (…)

Ante o exposto, concedo a ordem de habeas corpus para autorizar a transferência para a Penitenciária de Segurança Máxima Harry Amorin Costa, de Dourados/MS. Conforme disposto na inicial, as despesas decorrentes da transferência serão suportadas pelo paciente. É como voto.” (destacamos)

  

N o t a s

 

        A decisão é incomum, pois, geralmente, o Magistrado é influenciado por detalhes do mérito da condenação, os quais, no entanto, não têm força legal para impedir o direito do preso a uma execução regular da pena. Aqui, alegou-se que o preso foi condenado a mais de 25 (vinte e cinco) anos de reclusão e que era membro de uma “poderosa quadrilha de tráfico internacional”. Foram essas, na realidade, as razões pelas quais as instâncias inferiores do Judiciário não lhe concederem a transferência prisional a que tinha direito. Como bem ponderou o Min. Gilmar Mendes, tais alegações são “incapazes” de impedir a remoção do jurisdicionado, precisamente porque seu pedido está amparado em direito expresso.

Vale lembrar que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Esse é o valor que inspira o princípio da ressocialização dos presos, o qual é, aliás, uma das finalidades da pena criminal. Essa missão do Direito Penal está irradiada, também, na própria Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84): “art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado“. Nessa medida, obrigar o preso a cumprir a pena longe de sua família é prejudicar o seu retorno saudável ao convívio social.

A Constituição determina que seja “assegurado aos presos o respeito à integridade moral” (art. 5º, XLIX). Ser privado do afeto familiar é uma cautela que se harmoniza com a preservação de sua incolumidade moral? Lógico que não. Ao preso também terá “assegurada a assistência da família” (CF, art. 5º, LXIII). Isto é, a menos que o Judiciário a impeça de se aproximar dele. Não se pode olvidar, ainda, de que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (CF, art. 226) e, quando um de seus membros é mantido fora do alcance dos demais, não se está falando somente de prejuízo ao preso, mas a todos os integrantes do núcleo familiar. Se essa traumática separação tiver o aval do Estado, constatar-se-á uma completa inversão do quanto preconizado pelo art. 226 da CF: aquele que deveria proteger acaba por prejudicar.

Como se vê, a Constituição estabelece como vetor absoluto do processo de ressocialização do preso a proximidade de sua família, e que dela receba a assistência necessária para preservar a sua dignidade e a sua integridade moral. Por isso é que a Lei de Execução Penal prevê que “cada comarca terá, pelo menos 1 (uma) cadeia pública a fim de resguardar o interesse da Administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em local próximo ao seu meio social e familiar” (art. 103). O vigor e a legitimidade dessa cláusula é completamente alheio à gravidade do crime praticado e ao mérito da condenação.

 

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