O Habeas Corpus como meio de tutela do direito de protesto

 

              Em uma ação de habeas corpus preventivo coletivo impetrada por estudantes universitários e um jornalista, pleiteou-se a expedição de salvo conduto para que cidadãos pudessem permanecer no pátio da Câmara Municipal de Natal/RN. São cidadãos insatisfeitos com questões sócio-políticas locais que exercem, dessa forma, uma manifestação pacífica.

            Fora-lhes concedido o direito de lá permanecerem sem que fossem forçados a sair por ação policial. Contudo, a Câmara Municipal e o Município aforaram Mandado de Segurança pela cassação do salvo conduto, sendo que a liminar foi concedida, determinando-se, ainda, dia e hora certos para a desocupação.

            Em novo Habeas Corpus, desta feita ao STJ, os manifestantes requereram, em sede liminar, a revogação da decisão do MS, o que lhes foi concedido. Leia-se, abaixo, a íntegra da respectiva decisão:

            “Trata-se de Habeas Corpus Preventivo Coletivo com pedido de liminar impetrado nominalmente em favor de estudantes universitários e de jornalista, além de todos os integrantes do movimento denominado ‘Fora Micarla’ que ocupam o pátio da Câmara Municipal de Natal.

            Há notícia de impetração de um primeiro Habeas Corpus apontando que cidadãos insatisfeitos permanecem no pátio central da Câmara dos Deputados sem bloquear ou impedir o livre trânsito no recinto, permanecendo sentados, cobrando a continuação de Comissão Especial de Investigação sobre contratos de aluguéis firmados pelas Secretarias do Município de Natal, debatendo a situação do município.

            Pediram o direito de ir, vir e permanecer no local, temendo futuro e iminente abuso de força voltado à desocupação (fls. 53-54/STJ). O Juízo da 7ª Vara Criminal da Comarca de Natal asseverou que a manifestação popular configura ato de legítima liberdade de expressão e reunião, e concedeu liminar para expedição de salvo-conduto ‘a fim de que não sejam importunados por ordem das autoridades coatoras, desde que a manifestação siga de forma ordeira’ (fls. 57-58/STJ)

            A Câmara Municipal e o Município de Natal impetraram Mandado de Segurança com pedido de liminar contra a referida decisão. Afirmam que a invasão da Câmara se deu de forma inapropriada, desordeira, com mau uso, em situação de anarquia, para fins libidinosos e de utilização de substâncias entorpecentes e que o ato prejudica o desempenho das atividades institucionais do Poder Legislativo local em bem público de uso especial. Questionam a utilização do direito de reunião como fundamento da concessão de Habeas Corpus, além de suscitarem incompetência absoluta por não ter sido o HC impetrado perante uma das varas da Fazenda Pública da Comarca de Natal (fls. 36-52/STJ).

            A decisão foi proferida nos seguintes termos:

            Diante do exposto, defiro a medida liminar ora requerida, para suspender a decisão que concedeu salvo-conduto aos manifestantes que se encontram instalados/acampados no interior do prédio da Câmara Municipal do Natal e, por conseqüência, determino a desocupação até às 12 horas do dia 13 de junho de 2011, sob pena de uso de força policial (fls. 165-167/STJ).

            A Câmara Municipal, ao final, requereu a suspensão do cumprimento da decisão liminar até as 12 horas do dia 14.6.2011, para finalização de processo de negociação para desocupação (fl. 181/STJ).

            Esse é o contexto da impetração. Alega-se então que: a) ela se dá por impetrantes devidamente qualificados e outros identificáveis e determináveis por meio de imagens disponíveis pela internet, preservando ‘os dados de identificação civil dos ocupantes, no intuito de garantir a integridade física e moral dos mesmos’; b) a via adequada para discussão da posse é a ação de manutenção ou reintegração de posse no juízo de 1º grau; c) os pacientes não podem figurar no pólo passivo de Mandado de Segurança; d) o pedido do mandamus deveria ser restrito à cassação da decisão de origem, sendo indevidos o pedido e a concessão de ordem de desocupação; e) o direito à liberdade de locomoção transcende o direito de não ser preso e inclui aquele de ir, de vir, de ficar e de permanecer; f) não se está impedindo o regular funcionamento e as atividades da instituição.

            Pediu-se ‘seja concedida medida liminar, inaudita altera pars, para suspender imediatamente o ato coator, conferindo-se salvo conduto em favor dos pacientes, determinando-se que possam permanecer no pátio da CMN, ou a ele retornar, caso se tenha concretizado a violação do Direito de Locomoção vindicado, até o julgamento do mérito ou até que seja realizado acordo entre as partes envolvidas, visto que o ato coator é nulo de pleno direito (…). Diante da exigüidade do tempo, acaso a apreciação do pedido liminar ocorra depois de concretizada a violação do direito de locomoção, então, seja convertido o presente habeas corpus de preventivo para concreto e restabelecedor, determinando-se que os pacientes possam se locomover de volta para o pátio da CMN e lá permanecerem (fls. 25/STJ)’.

            É o relatório.

            Decido.

             Os autos foram recebidos neste Gabinete em 14.6.2011, às 13h18m. Acolho a competência da Primeira Seção para julgamento do Habeas Corpus, nos termos dos arts. 9º, §1º, incs. XII e XIII; e 13, inc. I, do RISTJ. Sem óbice também à impetração do Remédio contra concessão de medida Mandado de Segurança pelo Tribunal de origem, como sucedâneo de recurso.

            Sobre os instrumentos utilizados (adequação do mandamus, do Habeas Corpus ou de eventual reintegração de posse), tal questão se confunde com o mérito e com a idéia de proteção à liberdade de locomoção.

            Cediço que o Remédio heróico é cabível em situações de que resulte possibilidade de ofensa ao ‘jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque‘:

            Ele tutela o direito de ir e vir. The power of locomotion . O direito de ficar, de ir e vir de um lugar. Tutela o direito de não ser preso, a não ser em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente; o direito de não ser preso por dívida, salvo o caso do alimentante inadimplente; o direito de não ser recolhido à prisão nos casos em que se permite fiança ou liberdade provisório; o direito de não ser extraditado, a não ser nas hipóteses previstas na Magna Carta; o direito de freqüentar todo e qualquer lugar, ressalvadas aquelas restrições que podem ser impostas quando da concessão de sursis ou suspensão condicional do processo; o direito de viajar, ausentando-se de sua residência, ressalvadas as restrições de que tratam os arts. 328 e 367 do CPP (Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal 4, 33ª ed., São Paulo, Saraiva, 2011, p. 648)

            A perspectiva ampliativa do acesso ao writ transcende as limitações penais e outorga efetiva tutela à liberdade de locomoção, abrangendo ainda o direito de permanecer e ficar. Sobre o tema, confira-se percuciente acórdão no AgRg no HC 97119, Rel. Ministro Celso de Mello, Dje 8.5.2009.

            O Mandado de Segurança impetrado no Tribunal tinha natureza de sucedâneo de recurso, porquanto pretendia cassar o salvo conduto (fls. 51). Porém, os impetrantes foram além e pediram ‘a imediata desocupação dos manifestantes instalados na sede do Poder Legislativo Municipal, expedindo-se o competente mandado judicial para tanto, inclusive possibilitando a utilização de força policial’. Nesse aspecto, desbordou-se a finalidade inicial.

            Procede, portanto, o fundamento de que a ordem requerida e deferida pelo Tribunal de origem extrapola o objeto da impugnação. Ao investir contra o salvo-conduto, não podia, a priori, o Mandado de Segurança incluir ordem de desocupação – tal determinação depende do instrumento possessório correto.

            Agrego ainda que não é possível caracterizar, aqui e neste momento, a natureza desordeira da ocupação referida pela municipalidade. Por tudo isso, defiro parcialmente a liminar pleiteada para cassar os efeitos da ordem de desocupação mediante reforço policial, sem prejuízo de a Administração ingressar em juízo com as medidas adequadas para fazer valer a sua pretensão.

            Comunique-se urgentemente. Informem as partes o andamento processual do Mandado de Segurança de origem. Colham-se as informações das autoridades impetradas. Após, dê-se vista ao Ministério Público Federal.

            Publique-se.

            Intimem-se.

Brasília (DF), 14 de junho de 2011.

MINISTRO HERMAN BENJAMIN

Relator”

(STJ – HC 209707/RN – Rel. Min. Herman Benjamin – DJe de 17.6.11. Destaques originais)

 

N o t a s

 

            A decisão contém diversos trechos e fundamentos de alta importância social, como, p.ex., a garantia de um protesto contra políticos suspeitos de corrupção. Outro desses fundamentos, certamente, diz com o cabimento do habeas corpus. De acordo com a decisão acima, o cabimento dessa ação constitucional confunde-se “com a idéia de proteção à liberdade de locomoção“, compreendidos, nela, o “direito de permanecer e ficar”.

            Se fosse possível traduzir o Habeas Corpus em uma palavra, um bom palpite, hoje, seria acessibilidade. Acesso direto que torna o Judiciário e as autoridades responsivas e, na prática, significa proteção; segurança; garantia; respeito. Não foi à toa que o Ato Institucional nº 5 (1968) suspendeu-lhe uso, logo após ordenar o fechamento das portas do Congresso Nacional: é que nenhuma ditadura se cria quando a população dispõe de meios para contrariar o poder.

            Se é correto que o habeas corpus foi gestado para ser um meio de garantia unicamente contra o risco de efetiva ou iminente prisão, é igualmente certo que cabe ao ordenamento prever a sua própria capacidade de se adaptar à evolução da comunidade para a qual foi pensado. A Constituição determina que “sempre” será concedido o Habeas Corpus quando houver prejuízo ou risco de prejuízo à “liberdade de locomoção” (art. 5º, LXVIII). Mas, hoje, não se nega que a obrigação de comparecer a um ato processual relativo a processo nulo, sofrer acusação manifestamente carente de justa causa ou ser processado por autoridade incompetente são imposições que afrontam as possibilidades de liberdade de qualquer pessoa, motivo pelo qual os tribunais as batizaram de constrangimento ilegal – e com apoio nos arts. 651 e 652 do CPP.

            Efetivamente, está consolidada a orientação jurisprudencial segundo a qual o Habeas Corpus é a ação adequada e eficaz para: a) fazer trancar procedimentos administrativos ou judiciais ilegais, por ausência de justa causa (STJ – 5ª T. – HC 115935/DF – Rel. Min. Jorge Mussi – J. em 21.5.09); b) declarar a ilegalidade de provas (STJ – 6ª T. – HC 100879/RJ – Rel. Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura – J. em 19.8.08); c) garantir ao causídico o acesso a autos (STJ – 6ª T. – HC 97622/MA – Rel. Min. Paulo Gallotti – J. em 19.02.09); d) fazer respeitar o prazo razoável na duração de processos, arquivando-se as investigações que evidentemente extrapolem este limite (STJ – 5ª T. – HC 96666/MA – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – J. em 22.09.08); dentre outras. Patente, logo, que o constrangimento ilegal pode ter como objeto outros direitos que ameacem, ainda que por via indireta, a liberdade – em sentido amplo – do paciente.

            Nessa linha, vale a referência ao seguinte precedente do TJPR, dada a sua atualidade: “o remédio heróico, embora tenha destinação precípua de garantir a liberdade física do cidadão, como prescreve a Constituição Federal em seu art. 5°, LVVII possui abrangência mais ampla, atuando, inclusive, no combate às violações e arbitrariedades de autoridades públicas, viabilizando a defesa do cidadão em face de atos que possam, ainda que de forma reflexa, restringir sua liberdade ou ferir direitos constitucionalmente garantidos” (TJPR – HC 5927360 – 2ª C. Crim. – Rel. Des. José Maurício Pinto de Almeida – DJ de 4.12.09).

 

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