Nulidade por inversão da ordem das reperguntas a testemunhas (CPP, art. 212)

 

  O tema da decisão cuja ementa segue abaixo é relacionado à interpretação de uma recente alteração do Código de Processo Penal:

HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. RECEPTAÇÃO, TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA EM SEDE DE APELAÇÃO. AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INVERSÃO NA ORDEM DE FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS. NULIDADE. EXEGESE DO ART. 212 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690⁄08. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A nova redação dada ao art. 212 do Código de Processo Penal, em vigor a partir de agosto de 2008, determina que as vítimas, testemunhas e o interrogado sejam perquiridos direta e primeiramente pela acusação e na sequência pela defesa, possibilitando ao magistrado complementar a inquirição quando entender necessários esclarecimentos.

2. Caracterizado o constrangimento, por ofensa ao devido processo legal, sanável pela via do habeas corpus, quando o Tribunal, afastando preliminar defensiva em sede de apelação, admite que houve a inversão na ordem de formulação das perguntas.

3. A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma.

4. Ordem concedida para anular a audiência de instrução e julgamento reclamada e os demais atos subsequentes, determinando-se que outra seja realizada, nos moldes do contido no art. 212, do Código de Processo Penal.”

(STJ – HC 180705/MG – 5ª T. – Rel. Min. Laurita Vaz – DJe de 28.6.11)

 

O voto da eminente Ministra relator, parcialmente colacionado a seguir, está assim fundamentado:

“O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao julgar os recursos de apelação, admitiu que houve a inversão na ordem de formulação das perguntas. Entretanto, afastou a nulidade porque os réus foram interrogados nos termos do parágrafo único do art. 57, da Lei n.º 11.343⁄06, aplicável à espécie, que autoriza o Juiz a presidir o ato e ser o primeiro a interrogar o réu, nada havendo que ser reparado.

Confiram-se os seguintes excertos do acórdão proferido em sede de apelação:

Os réus Paulo Antônio, Leandro Pontara e Leandro Paulo Pining, articulam preliminar sustentando a nulidade de toda a fase instrutória, ao fundamento de que não foi observada a regra do art. 212, do Código de Processo Penal por ocasião da oitiva das testemunhas, vulnerando o devido processo legal. Compulsando os autos, tem-se que a oitiva de testemunhas, de fato, não obedeceu aos termos do art. 212, do Código de Processo Penal, sendo feita conforme dispunha a norma anterior, iniciando-se a inquirição pelo Juízo, seguindo-se perguntas do Ministério Público e das partes, conforme ff. 302⁄350. No entanto, não verifico a nulidade apontada. Embora a Lei nº 11.690⁄08 tenha modificado a anterior redação do art. 212, do Código de Processo Penal, determinando que a oitiva de testemunhas será apenas complementada pela intervenção do Magistrado, tem-se que não cuidaram os apelantes de demonstrar qual o prejuízo sofrido. Saliente-se que, a teor dos arts. 563 e 566, ambos do Código de Processo Penal, as irregularidades apontadas não se traduzem em nulidade absoluta, mas apenas relativa, dependentes da comprovação do prejuízo. Os recorrentes não informaram qualquer tese defensiva que deixou de ser questionada, tampouco em que a manutenção do rito anterior lhes prejudicou. (fl. 121)

 A Lei n.º 11.690⁄08 deu nova redação ao art. 212 do Código de Processo Penal, nos seguintes termos: ‘Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único.  Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

Não obstante haja resistência pertinente às mudanças procedidas na legislação processual penal, é certo que, com a nova redação dada ao aludido dispositivo, ‘o juiz simplesmente poderá complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos, cabendo-lhe ainda não admitir as perguntas que não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já feita‘ (SOUZA, JOSÉ BARCELOS DE. Boletim IBCCrim. Novas leis de processo: inquirição direta de testemunhas. Identidade física do juiz.ano 16, n.º 188, julho, 2008, p. 15). Por oportuno, mister transcrever lição da autoria de EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA, litteris: ‘A Lei 11.690⁄08 trouxe importante alteração no procedimento de inquirição de testemunhas. Ali se prevê que as perguntas das partes serão feitas diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem a repetição de outra já respondida (art. 212, CPP). E, mais ainda, prevê que o juiz poderá complementar a inquirição, sobre pontos eventualmente não esclarecidos (art. 212, parágrafo único, CPP). Observa-se, então, que a medida encontra-se alinhada a um modelo acusatório de processo penal, no qual o juiz deve assumir posição de maior neutralidade na produção da prova, evitando-se o risco, aqui já apontado, de tornar-se o magistrado um substituto do órgão de acusação. Assim, as partesiniciam a inquirição, e o juiz a encerra‘ (Curso de Processo Penal, 11.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 370.) Ao dissertar sobre o tema, AURY LOPES JR. assinala: ‘O antigo sistema ‘presidencial’, onde as perguntas eram feitas ao juiz e este as (re)formulava à testemunha, felizmente foi abandonado com a nova redação do art. 212 do CPP. […] Agora as perguntas serão diretas, com o juiz atuando como filtro, regulador dessa comunicação, para evitar a indução ou mesmo constrangimento de testemunha. Pela leitura do parágrafo único, a atuação do juiz, somente se dará sob os pontos não esclarecidos, ou seja, uma típica atividade complementar, secundária, portanto.‘ (Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 602.)  Não é demais destacar a opinião segundo a qual a referida mudança trouxe o método de exame direto e cruzado da prova oral utilizado também na Inglaterra e na Itália, abolindo o antigo sistema presidencial quanto à formulação das perguntas e reperguntas por parte do juiz, inerente ao processo inquisitório, adotando, assim, o sistema adversarial anglo-americano, consistente primeiramente no direct-examination– por parte de quem arrolou – e posteriormente no cross-examination – sendo submetido à parte contrária, leia-se: ‘cross-examination constitui um traço saliente do sistema processual da common law no tocante à produção das provas e sempre foi visto pela doutrina deste WIGMORE, como o meio mais eficaz para a descoberta da verdade‘ (GOMES FILHO. ANTÔNIO MAGALHÃES, As reformas no processo penal, São Paulo: RT, 2009, p. 285). O aludido método é considerado elemento essencial e é tido como garantia fundamental pela Constituição nos países de common law, sendo, ainda, salientado pelo citado autor que no ‘cross-examination evidenciam-se as vantagens do contraditório na coleta do material probatório, uma vez que, após o exame direto, abre-se à parte contrária, em relação à qual a testemunha é presumidamente hostil, um amplo campo de investigação. No exame cruzado, é possível fazer-se uma reinquirição a respeito dos fatos já abordados no primeiro exame (cross-examination as to facts), como também formular questões que tragam à luz elemento para a verificação da credibilidade do próprio depoente ou de qualquer outra testemunha (cross-examination as to credit)‘ (p. 286). E conclui: ‘Trata-se, portanto, de mecanismos característicos de um sistema acusatório puro, cuja função é fundamental não somente para uma apuração mais correta dos fatos, mas principalmente para atestar a correção do debate dialético entre as partes, servindo igualmente à legitimação das decisões‘ (p. 287). Constata-se, então, que no caso vertente restou violado due process of law constitucionalmente normatizado, pois o art. 5º, inciso LIV, da Carta Política Federal, preceitua que ‘ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal‘, e na espécie o ato reclamado não seguiu o rito estabelecido na legislação processual penal, acarretando a nulidade do feito, porquanto, a teor do art. 212 do Código Instrumental, a oitiva das testemunhas deve ser procedida com perguntas feitas direta e primeiramente pelo Ministério Público e depois pela defesa, sendo que na hipótese, o Magistrado não se restringiu a colher, ao final, os esclarecimentos que elegeu necessários, mas realizou o ato no antigo modo, ou seja, efetuou a inquirição das vítimas, olvidando-se da alteração legal, mesmo diante do alerta ministerial no sentido de que a audiência fosse concretizada nos moldes da vigência da Lei n. 11.690⁄2008. Quanto ao tema, aliás, mister lembrar o magistério de ALEXANDRE DE MORAES, in verbis: ‘O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe a paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa […] O devido processo legal tem como corolários a ampla defesa e o contraditório, que deverão ser assegurados aos litigantes, em processo judicial criminal ou civil ou em procedimento administrativo, inclusive aos militares, e aos acusados em geral, conforme o texto constitucional expresso‘ (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 365). Mais adiante o constitucionalista destaca que a ‘tutela jurisdicional efetiva supõe o estrito cumprimento pelos órgãos judiciários dos princípios processuais previstos no ordenamento jurídico, em especial o contraditório e a ampla defesasendo que não constituem ‘mero conjunto de trâmites burocráticos, mas um rígido sistema de garantias para as partes visando ao asseguramento de justa e imparcial decisão‘ (p. 366). Então, além de a parte ter direito à estrita observância do procedimento estabelecido na lei, conforme assegurado pelo princípio do devido processo legal, sendo importante relembrar que na espécie os Pacientes tiveram proferido julgamento em seu desfavor, certo é que, diante do novo método utilizado para a inquirição de testemunhas, a colheita da referida prova de forma diversa, ou seja, pelo sistema presidencial, indubitavelmente acarretou-lhes evidente prejuízo. Nesse sentido é a jurisprudência desta Corte Superior: (…)

Nesse passo, em que pese os judiciosos fundamentos expostos no aresto hostilizado, o qual mesmo admitindo que houve a inversão apontada pelo Impetrante, não anulou a audiência procedida em desacordo com o art. 212 do Diploma Processual Repressivo, resta suficientemente demonstrada a nulidade decorrente do ato em apreço, em razão de evidente ofensa ao devido processo legal, sendo mister reiterar que contra os Pacientes foi proferida sentença condenatória, édito repressivo que encontra suporte nas declarações colhidas em desacordo com a legislação em vigor, bem demonstrando que, a despeito de tratar-se ou não de nulidade absoluta, houve efetivo prejuízo, quer dizer, é o que basta para se declarar nulo o ato reclamado, assim como os demais subsequentes, e determinar-se que outro seja realizado dentro dos ditames legais. (…)

Ante o exposto, CONCEDO a ordem para anular a audiência realizada em desconformidade com o contido no art. 212, do Código de Processo Penal e os atos subsequentes, determinando-se que outra seja procedida, nos moldes do referido dispositivo.

É o voto.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            Durante décadas a sistemática processual penal previu que o magistrado iniciaria as perguntas nas audiências, tanto às partes quanto às testemunhas. Por isso, é natural que, alterada a lei para determinar que na inquirição de testemunhas o juiz terá atuação apenas residual, perguntando o que as partes não tiverem, antes, indagado, haja certa resistência – tanto por costume quanto por discordância. Mas a letra da lei é cogente.

            O fato é que “no art. 212 é estabelecida outra ordem, em que as perguntas são desde logo formuladas diretamente pelas partes. A intervenção do juiz vem prevista a seguir, no parágrafo único no mencionado art. 212: ‘Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição‘.” (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Provas – Lei 11.690, de 09.06.2008. In ASSIS MOURA, Maria Thereza Rocha de (Coord.). As reformas no processo penal – as novas Leis de 2008 e os Projetos de Reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 287-288). Não pode haver dúvidas: “a ordem de inquirição indicada no artigo é clara: as partes têm a fala inicial e o Juiz a fala supletiva, invertendo-se a lógica do modelo anterior.” (CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal – comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 415).

            A decisão aqui comentada foi unânime. Ela levou em consideração não somente o alerta que o próprio Ministério Público fez ao magistrado durante a audiência, como também a circunstância de que houve sentença condenatória, pautada precisamente na prova oral colhida em desacordo com o art. 212, do CPP. Assim, demonstrada a boa-fé da parte, bem como o prejuízo – que é pressuposto sempre que há a condenação – a solução dada pelo STJ foi escorreita: determinar a nulidade do ato instrutório ocorrido sem a cautela da nova ordem processual de inquirição de testemunhas, para que outro seja realizado, desta feita, de acordo com a nova lei.

 

Voltar ao topo