Nova manifestação da acusação após resposta da defesa: nulidade

 

O acórdão a seguir ementado representa mais um passo em direção à consolidação do processo penal constitucional:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. RESPOSTA DA ACUSAÇÃO À DEFESA PRELIMINAR. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. ORDEM CONCEDIDA. Inexistindo previsão legal de manifestação do Ministério Público após a defesa preliminar, é de rigor a anulação da ação penal, para que, em observância aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, seja assegurado ao réu o direito de falar por último antes de eventual absolvição sumária prevista no artigo 397 do CPP.”

(TRF 4ª R. – Rel. Des. Fed. Victor Luiz dos Santos Laus – Rel. p/ acórdão Des. Fed. Paulo Afonso Brum Vaz – 7ª T. – HC 5002458-67.2011.404.0000 – DJe de 25.4.11)

 

Do corpo do acórdão, extraem-se os seguintes fundamentos do voto vencedor, do eminente Des. Fes. Paulo Afonso Brum Vaz:

VOTO DIVERGENTE

O eminente Relator decide por bem denegar a ordem de habeas corpus.

Peço vênia para divergir de Sua Excelência, porquanto a decisão impetrada fez tábula rasa do Estatuto Processual Penal vigente, que, como é cediço, não prevê manifestação do órgão acusatório após a defesa preliminar.

Além de incorrer em flagrante ilegalidade, a autoridade coatora violou o princípio elementar do direito processual penal de que a defesa fala por último!

Logo, se o processo penal existe para proteger o acusado do arbítrio do Estado no exercício do direito de punir, é inconcebível permitir que o Parquet tenha assegurado pelo Poder Judiciário o direito de contraditar a manifestação do denunciado, notadamente às vésperas de eventual absolvição sumária preconizada no artigo 397 do CPP, sob pena de inaceitável violação das liberdades públicas asseguradas na Constituição da República.

Em comunhão de ideias, manifestou-se o eminente Procurador Regional da República Fábio Bento Alves em percuciente parecer lançado no evento 08:

“A pretensão da parte impetrante merece ser acolhida, porquanto se verifica configurada a apontada ilegalidade, capaz de ensejar a concessão da ordem, pois a manifestação da acusação após o oferecimento da resposta escrita da defesa, ainda que o órgão ministerial não tenha inovado em seus argumentos, é apta a causar a nulidade dos atos praticados após tal intimação, por afronta ao princípio do devido processo legal e do contraditório.

A nova dicção legal do art. 395 do Código de Processo Penal1 determina que, uma vez oferecida a denúncia, o juiz deve verificar inicialmente a aptidão da peça acusatória, bem como a existência dos pressupostos processuais, das condições e da justa causa para o exercício da ação penal.

Após verificado estarem presentes todos esses requisitos, a denúncia será recebida e o acusado deverá ser citado para responder à acusação, oportunidade em que poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interessa a sua defesa, conforme preceituam os artigos 396 e 396-A do CPP, in verbis:

“Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

Parágrafo único. No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.”

“Art. 396-A. Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário.”

É nesta fase processual que se opera o recebimento da denúncia, consoante entendimento da Colenda 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça: […] (STJ. HC 138089/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 02/03/2010, DJe 22/03/2010)

Passo seguinte, oferecida a resposta à acusação, o juiz deverá analisar a possibilidade da existência de causas excludentes da ilicitude do fato ou da culpabilidade do agente, bem como a possível atipicidade do fato ou a presença de causa extintiva de punibilidade (art. 397 do CPP). Não verificada qualquer dessas hipóteses, o processo terá seguimento, com a designação da audiência de instrução e julgamento, nos termos do que dispõe o art. 399 do CPP.

Com efeito, ao sopesar o novo procedimento estabelecido pela Lei n.º 11.719/2008, constata-se efetivamente não haver previsão de abertura de vista ao MINISTÉRIO PÚBLICO da defesa apresentada pelo acusado, da mesma forma como não existia no procedimento anterior, em que a defesa prévia do acusado era apresentada somente após o seu interrogatório ou no prazo subsequente de três dias (art. 395, redação anterior).

Diferença marcante entre o atual e o anterior procedimento, e consequências daí defluem – como o estabelecimento de uma espécie de julgamento antecipado do processo sem ao menos ter sido interrogado o réu, radica-se exatamente no momento para a apresentação da defesa prévia do acusado, se antes ou depois de seu interrogatório, não havendo a nova lei, porém, inovado quanto à estipulação de uma oportunidade processual para o órgão acusador manifestar-se após a apresentação da resposta escrita.

Releva dizer que o momento para a acusação reunir o substrato probatório mínimo e convencer-se da tipicidade do fato e da inexistência de excludentes é o que precede ao oferecimento de denúncia, não havendo motivo para estabelecer-se ocasião processual para verdadeira tréplica ao órgão acusador, o que remataria por obrigar o juízo a oportunizar nova vista à defesa do acusado, sob pena de violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Não é esse o rito previsto pelos artigos 397 e 399 do CPP, no que deve ser respaldada a tese do paciente, resultando a adoção do procedimento inquinado também em indevida dilação, com possível ofensa à garantia da razoável duração do processo e da celeridade de sua tramitação (CF, art. 5º, LXXVIII), a qual resulta afrontada quando introduzida fase não prevista em lei e que retarda a prolação do provimento jurisdicional subsequente à defesa do acusado, na forma dos artigos 397 e 399 do CPP, ou seja, ou o julgamento absolutório antecipado ou processamento do feito criminal, vez que já recebida a denúncia na fase do art. 396.

A propósito, já decidiu esse E. TRF da 4ª Região, verbis:

“PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. DECISÃO, DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA, QUE NÃO ACOLHE NENHUMA DAS HIPÓTESES PREVISTAS NOS INCISOS I A IV DO ARTIGO 397, DO CPP. PROSSEGUIMENTO DO FEITO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL DE RECURSO. 1. O art. 397, na nova sistemática processual penal, veio a possibilitar ao juiz da instrução, tão logo apresentada a resposta escrita, o julgamento absolutório antecipado da pretensão punitiva, sempre que verificar a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato ou da culpabilidade do agente (salvo inimputabilidade), que o fato narrado evidentemente não constitui crime ou, ainda, estar extinta a punibilidade do agente. […] (TRF4, RSE 2002.71.00.047746-2, Sétima Turma, Relator Tadaaqui Hirose, D.E. 27/05/2010)

É dizer, em sede de processo penal o procedimento deve ser estrito, seguindo detidamente aquele iter previsto expressamente na lei, formal e materialmente falando, em razão da elevada natureza dos bens jurídicos em jogo, sob pena de temerária introdução de elementos idiossincráticos do Juízo e das partes no processamento da matéria-crime.

À parte de considerações acerca de real prejuízo à defesa dos pacientes no caso concreto, no qual a manifestação ministerial efetivamente analisou as teses suscitadas na resposta da defesa, é razoável concluir que a abertura de tal oportunidade processual é potencialmente apta a interferir no convencimento do juízo, sem haver previsão legal para tanto, o que por si só merece censura.

Dessarte, em face da ausência de previsão legal para a intimação do órgão ministerial para manifestar-se sobre a resposta da defesa do réu, deve ser concedida a ordem, anulando-se tão-somente os atos praticados a partir da referida intimação, permanecendo hígidas a denúncia e a resposta do acusado, com determinação ao juízo impetrado de imediata análise dos autos conclusos”.

Assim, considerando que a ação penal originária já tramita na plataforma digital, e que a absolvição sumária é medida adotada pelo julgador excepcionalmente, realmente não havia razão alguma para o MPF se manifestar naquela oportunidade, visto que tinha acesso online ao conteúdo da defesa preliminar e já tinha sido, em tese, suficientemente demonstrada a a materialidade e autoria delitiva na peça incoativa. O processo não pode ser uma marcha a ré. Autor e réu falam sucessivamente em cada fase e nessa ordem. Logo, uma inversão dessa sequência, com tamanho desequilíbrio, em matéria penal, somente poderia ocorrer em favor da defesa, jamais contra!

Por fim, não há necessidade de demonstração de prejuízo, já que tamanho aviltamento da ordem natural do processo penal, em flagrante desrespeito às garantias fundamentais, é presumidamente nefasto e efetivamente afronta os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, assegurados nos incisos LIV e LV do artigo 5º da Carta Magna.

Ante o exposto, com a devida vênia do eminente Relator, voto por conceder a ordem de habeas corpus para anular a AP nº 5002612-68.2010.404.7001 a partir do evento 40, oportunizando nova manifestação da defesa e nova apreciação da defesa preliminar.

Desembargador Federal PAULO AFONSO BRUM VAZ” (Destaques originais).

 

N o t a s

 

O acórdão contou com voto o vencido do emiente relator. Na ocasião, Sua Excelência negava a ordem de habeas corpus sob três fundamentos, em resumo:

a) Caberia aos impetrantes demonstrar não apenas o aspecto “formal” do vício, mas também, e, principalmente, a “perspectiva material” da deformidade procedimental (prejuízo concreto), ou seja, em que medida a manifestação extemporânea do Ministério Público teria influenciado a decisão que declarou aberta a ação penal; b) O princípio da presunção racional não se vê contaminado ou prejudicado pelas alegações dos sujeitos do processo, inclusive porque é da essência do vocábulo jurisdição que ao juiz cabe dizer o direito“; c) A anexação de novos documentos pela defesa em sede de resposta exigiu a audiência do Ministério Público, em atenção ao contraditório (CF, art. 5º, LV).

Mas se deve partir, como sempre, da premissa de que processo é liberdade e garantia, e de que forma é respeito. É dizer, as partes dominam, de antemão, quais as regras prescritas em lei para a efetivação da potestade punitiva e os limites de sua promoção. A certeza quanto à aplicação dos preceitos normativos e das normas instrumentais confere estabilidade às relações sociais e jurídicas. O processo penal não tem “cunho utilitarista ou aprioristicamente legitimante do poder punitivo” (TAVARES, Juarez. Teoría del injusto penal. Buenos Aires: IBdeF, 2010, prólogo, XVIII. Traduzido agora). As normas penais “não têm uma função protetora, senão limitadora” (idem). Nessa perspectiva, o arbitrium iudicis deve ceder frente ao reinado da lei constitucional. Eventual complacência com violências dirigidas ao procedimento legal acarreta prejuízos coletivos – os individuais são apenas reflexos.

Para efeito de demonstração da coação ilegal, suscitou-se a suposta necessidade de demonstração de prejuízopas de nullité sans grief – exigência segundo a qual – temerariamente – não se declara suficientemente violado o devido processo legal – e, portanto, nulo o feito – quando do ato ilícito não resulte prejuízo sensível ao jurisdicionado que o alega. De saída, convém anotar: se a decisão que recebe a denúncia e declara aberta a ação penal sem ouvir por último a defesa, tornando mais clara e deixando mais próxima a ameaça de punição corporal, não consubstanciar, por si só, prejuízo bastante ao paciente, então, francamente, não se assemelha viável determinar que tipo de prejuízo a jurisprudência estaria a exigir para o efeito do reconhecimento do atentado ao devido processo legal.

Em paralelo, não prospera, igualmente, a remissiva segundo a qual a defesa apresentara – no julgado paradigma – documentos então desconhecidos pela acusação, justificando-se, na hipótese, o expediente extralegal da audiência por último do dominus litis.  O CPP não lhe dá essa liberdade (arts. 396 a 399), sob pena de violação à ampla defesa e ao contraditório. Somente se cogita dessa opção em benefício da acusação quando a lei, explicitamente, admite-a, como, por exemplo, na lei dos procedimentos originários perante os tribunais (Lei n.º 8.038/90, art. 5º). A prevalecer o entendimento referente à apresentação de documentos novos, caso a defesa, na fase de diligências finais (CPP, art. 402), apresente novos documentos, a acusação deveria ser intimada como etapa prévia à prolação da sentença, por coerência sistêmica. Mas isso não seria, via de regra, correto.

Com relação ao último ponto, não se nega a proeminência do princípio da presunção racional, mas, se é certo que ele ilumina as decisões judiciais, não é menos correto que sua aplicação está condicionada ao atendimento, anterior, de um procedimento prévio, impositivo e estruturalmente inflexível. Dele, o Magistrado não pode dispor motivado por raciocínios pragmáticos, sob pena de retorno ao império de um homem só, tal como na Idade Média, com a prevalência do direito consuetudinário sobre a lei escrita: páginas da História que a sociedade somente faz questão de lembrar para não revivê-las (HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno. Comentários ao Código Penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 40). Em suma, não se chega ao princípio da presunção racional adotando-se, para tanto, o procedimento que mais convém ao julgador sob o pretexto de que não há prejuízo ao réu (e quando haveria, nessa fase de prelibação?).

É elementar: se o Direito Penal democrático tem a função primeira de limitar o poder do Estado e não a de proteger a sociedade contra o delinquente, então a violação a uma norma instrumental de interesse comum representa, por si só, prejuízo suficiente a nulificar o feito, pouco importando a premonição segundo a qual, fosse realizado o ato conforme a lei prescreve, o resultado desfavorável ao acusado seria o mesmo. O interesse, aqui, é antes coletivo e apenas reflexamente individual, como se disse.

Nessa toada, se for o caso de se recorrer ao mecanismo da “presunção de prejuízo“, que se reconheça, então, prejuízo no rompimento da presunção constitucional de segurança jurídica, imantada no dever de obediência à ordem processual. É dizer: se existe presunção válida no Estado de Direito, ela deve ser aquela referente à preservação da segurança e da estabilidade das relações mediante o atendimento a garantias públicas. O exercício de uma garantia não pode ficar vinculado a um hipotético resultado danoso (vide STF – HC 87926 – Pleno – Rel. Min. Cezar Peluso – DJe de 24.04.2008). A ordem estrita de atos praticados pelas partes no diálogo do processo penal (dialética) – primeiro a acusação e depois a defesa – é imperativa por força mesmo dos princípios-garantias do contraditório (CF, art. 5º, LV) e do devido processo legal (CF, art. 5º LIV). É o que demanda a perseguição democrática de crimes, a perigo de supressão das garantias individuas e implementação de esquemas totalitários.

Com a manifestação por último da acusação, suprime-se a possibilidade de contradita da defesa antes do recebimento definitivo da denúncia, embora a Constituição estabeleça exatamente o contrário. É da essência do contraditório assegurar o uso da palavra ao réu, por intermédio do defensor, sempre depois da intervenção do Ministério Público e não o contrário, sob pena da promoção de um contraditório às avessas. O princípio é o da ampla defesa e não o da “ampla acusação”. Isso decorre da concepção do Direito repressivo como um sistema limitativo do poder punitivo do Estado e não como sistema de “proteção social” em face do delinquente.

O direito da defesa de falar por último decorre do próprio sistema normativo, como se percebe, sem esforço, de diversos preceitos do CPP. As testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa (art. 400, caput). É conferida vista dos autos ao Ministério Público e, somente depois, à defesa para requerer diligências (CPP, art. 402), bem como para a apresentação de memoriais. A condução do processo conforme exige o procedimento legal, ouvindo-se primeiro quem acusa, e, depois, quem se defende, é proteção de todos os cidadãos, alvos que são, em potencial, da ameaça penal: ninguém está imune à persecução penal injusta.

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