Exemplo de superação da Súmula 691/STF

 

            São raros os casos em que o Supremo Tribunal Federal considera possível superar a Súmula 691 para conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão da instância inferior que nega pedido liminar. Veja-se a seguinte ementa:

“Habeas Corpus. 2. Alegação de nulidade, ao argumento de que somente o defensor dativo fora intimado do acórdão condenatório que reformara sentença absolutória, não tendo interposto qualquer recurso, o que permitiu o trânsito em julgado da condenação, impondo ao paciente grave prejuízo. Ocorrência. 3. Afronta ao devido processo legal. 4. Superação da restrição sumular 691. 5. Ordem concedida para anular o trânsito em julgado do acórdão proferido pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná na Apelação de n. 0462482-6, com a consequente reabertura do prazo para interposição de recursos.”

(STF – HC 105298/PR – 2ª T. – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJe de 14.6.11)

 

Do corpo do acórdão, há os seguintes trechos:

“Consoante relatado no presente habeas corpus a defesa sustenta a existência de nulidade, ao argumento de que somente o defensor dativo fora intimado do acórdão condenatório que reformara sentença absolutória, sem que tivesse interposto qualquer recurso, o que permitiu o trânsito em julgado da condenação, impondo ao paciente grave prejuízo.

Em princípio, a jurisprudência desta Corte é no sentido da inadmissibilidade da impetração de habeas corpus nas causas de sua competência originária, contra decisão denegatória de liminar em ação de idêntica natureza articulada perante tribunal superior, antes do julgamento definitivo do writ (…). Esse entendimento está representado na Súmula n. 691. Eis o teor: ‘Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar‘.

É bem verdade que o rigor na aplicação da Súmula n. 691 tem sido abrandado por julgados desta Corte em hipóteses excepcionais, em que: a) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para

evitar flagrante constrangimento ilegal; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou na manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do STF (…).

Na hipótese dos autos, à primeira vista, caracteriza-se situação ensejadora do afastamento da Súmula n. 691. De início, observo que o direito de defesa constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do postulado da dignidade da pessoa humana. Esse princípio, em sua acepção originária, proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto de processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.

Tenho enfatizado, relativamente ao direito de defesa, que a Constituição de 1988 (art. 5º, LV) teve o condão de ampliá-lo, assegurando aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Assinale-se, por outro lado, que há muito vem a doutrina constitucional enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar – como bem anota Pontes de Miranda – é uma pretensão à tutela jurídica (Comentários à Constituição de 1967/69, tomo V, p. 234).

Não é outra a avaliação do tema no direito constitucional comparado. Apreciando o chamado ‘Anspruch auf rechtliches Gehör‘ (pretensão à tutela jurídica) no direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgericht que essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o de informação sobre o objeto do processo, mas também o de ver seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar (Cf. Decisão da Corte Constitucional alemã — BVerfGE 70, 288-293; sobre o assunto, ver, também, Pieroth e Schlink, Grundrechte – Staatsrecht II, Heidelberg, 1988, p. 281; Battis, Ulrich, Gusy, Christoph, Einführung in das Staatsrecht, 3a. edição, Heidelberg, 1991, p. 363-364).

Daí, afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos:

1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

2) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defensor a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;

3) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as

razões apresentadas (Cf.Pieroth e Schlink, Grundrechte -Staatsrecht II, Heidelberg, 1988, p. 281; Battis e Gusy, Einführung in das Staatsrecht, Heidelberg, 1991, p. 363-364; Ver, também, Dürig/Assmann, in: Maunz-

Dürig, Grundgesetz-Kommentar, Art. 103, vol IV, no 85-99).

(…)

Destaco não desconhecer jurisprudência desta Corte no sentido de que a intimação pessoal prevista no art. 392 do CPP aplica-se somente à decisão proferida em primeiro grau. Em segundo grau e nas instâncias superiores, a regra é a intimação dar-se pela imprensa oficial (HC 69.717/

SP, rel. Min. Néri da Silveira, Segunda Turma, DJ 7.5.1993).

(…)

Ocorre que, consoante se depreende das informações prestadas pelo Tribunal local, somente o defensor dativo fora intimado pessoalmente da

publicação do acórdão n. 0462482-6 – por meio de carta de ordem -, tendo a comunicação do paciente se dado somente pela imprensa oficial.

Como não houve a interposição de recursos, a decisão transitou em julgado em 5.8.2009. Tenho para mim que, dada a singularidade da espécie sob exame – envolvendo sentença absolutória em primeiro grau, acórdão condenatório em segundo, falta de intimação pessoal do paciente patrocinado por defensor dativo -, houve afronta ao devido processo legal, mais especificamente nas vertentes do contraditório e da ampla defesa, pois é perfeitamente razoável concluir que o paciente pode não ter tomado ciência da intimação pela imprensa oficial, o que lhe retiraria, por conseguinte, a oportunidade de deliberar sobre a conveniência ou não da interposição dos pertinentes recursos.

(…)

Nesses termos, meu voto é no sentido de superar a restrição da Súmula 691 no intuito de conceder a ordem de habeas corpus, a fim de anular o trânsito em julgado do acórdão proferido pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, nos autos da Apelação de n. 0462482-6, com a consequente reabertura do prazo para a interposição de recursos.”

 

N o t a s

 

         Em 28 de maio foi divulgada, nesta coluna, decisão do STF (HC 103673/SP – 2ª T. – Rel. Min. Ayres Britto – DJe de 22.10.10) que considerava possível relativizar a Súmula 691 em casos de prisão com fundamentação inidônea; contudo, optou-se, na ocasião, por não conhecer da ação constitucional, concedendo-se, outrossim, a ordem de ofício. A rigor, se o óbice sumular pode ser superado, e se é esse o caso, caberia conhecer da ação e julgar seu mérito (embora o resultado prático tenha sido o mesmo).

 

            O STF e o STJ têm evitado ao máximo conhecer de medidas de urgência impetradas contra decisões liminares das correspondentes instâncias inferiores, como meio de desencorajar a população a ingressar com um número excessivo de pedidos e, assim, tentar desanuviar, ao menos um pouco, as assoberbadas pautas de julgamento. O fim é legítimo; o meio não.

            Ora, o acórdão aqui comentado reconhece, por um lado, que “a jurisprudência desta Corte é no sentido da inadmissibilidade da impetração de habeas corpus nas causas de sua competência originária, contra decisão denegatória de liminar…”; mas, por outro lado, anota que “o direito de defesa constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do postulado da dignidade da pessoa humana“, e que “o Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações“. Vê-se que, apesar dos esforços, as premissas são completamente incompatíveis.

            O Judiciário, com a edição da Súmula 691, procurou resolver, judicialmente, um problema que é de ordem político-administrativa. Não deu certo. A realidade tratou de demonstrar que as inúmeras espécies de constrangimentos ilegais e de violências a direitos que podem ocorrer não se contêm na restrita literalidade da redação do enunciado. Ou seja, a manobra redundou na criação de mais um problema: o da inconstitucionalidade da limitação do acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV), provocada pela súmula. Tanto é assim que, a cada vez que o magistrado deve justificar a razão pela qual ele afasta o óbice sumular para, em um determinado caso “excepcionalíssimo” e digno da benesse, conhecer do pedido, ele se vê obrigado a lembrar de toda uma gama de garantias constitucionais públicas dos jurisdicionados. Garantias que, em verdade, estão a todo tempo sufocadas pela finalidade acachapante da Súmula 691.

            Outro ponto é o exacerbado casuísmo a que ficam sujeitos os jurisdicionados. Cabe ao arbítrio de cada magistrado julgar se há, naquele caso, “flagrante constrangimento ilegal” que justifique a gravíssima superação da súmula. Isto é, a parte fica extremamente insegura quanto à proteção ao seu direito quando – apesar de se considerar lesada e, muitas vezes, com razão – tudo dependerá do afastamento de um obstáculo que não foi feito para ser afastado. Diante desse cenário, favorece-se a proliferação de decisões que indeferem pedidos liminares absolutamente carentes de fundamentação adequada: elas simplesmente não serão revistas pela instância superior a tempo de se corrigir o abuso cuja correção é reclamada pelo jurisdicionado.

 

Voltar ao topo