Cabimento de Reclamação por descumprimento de acórdão

 

            São raros os casos em que se admite o cabimento e o processamento de uma reclamação sob o fundamento de não cumprimento, pelo Juízo de 1ª instância, do acórdão da instância superior. Veja-se a seguinte ementa:       

“RECLAMAÇÃO. HABEAS-CORPUS CONCEDIDO CONTRA ACÓRDÃO DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO QUE MANTEVE AÇÃO PENAL CONTRA OS PACIENTES. PRETENDIDA REDISTRIBUIÇÃO A OUTRO MINISTRO. DESCUMPRIMENTO PELO MAGISTRADO DE PRIMEIRO GRAU DO ACÓRDÃO DO STJ PELO QUAL FOI ANULADO O PROCESSO DA AÇÃO PENAL A QUE RESPONDEM OS RECLAMANTES EM PRIMEIRO GRAU.

I. Reclamação oferecida contra o Juiz Federal da 11ª Vara Federal de Fortaleza e não contra o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a quem caberia como autoridade impetrada cumprir ou determinar o cumprimento do acórdão.

II. Justificativas do magistrado que se fundam na falta de recebimento do inteiro teor do acórdão do STJ e pendência de prazos da parte.

III. Simples comunicação, por telegrama do resultado do julgamento ao TRF impetrado – e ao Juízo de primeiro grau que não é subordinado diretamente ao STJ – é, em princípio, insuficiente para o imediato cumprimento do acórdão, mesmo quando disponível o inteiro teor na página do STJ na Internet.

IV. O Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça estabelece que a comunicação do julgamento pode ser feito por meio de ofício ou telegrama, sem prejuízo da remessa da cópia do acórdão (art. 204 e § 1º RI), o que significa que a remessa do acórdão é obrigatória ao impetrado.

V. Na hipótese de anulação do processo, poderá o Tribunal ou o Juiz aguardar o recebimento da cópia do acórdão para efeito de renovação dos atos processuais (art. 204, § 2º RI).

VI. Conduta do magistrado que todavia revela resistência injustificada por reiteradas manifestações com fundamento nas quais deixou de prestar cumprimento ao julgado.

VII. A despeito das ocorrências relatadas pelo magistrado não era impossível ou inviável o exato conhecimento do inteiro teor do acórdão cujo cumprimento também lhe cabia.

VIII. Reclamação julgada procedente em parte, por falta de atendimento dos termos da ordem de habeas-corpus, aos quais o magistrado não poderia, razoavelmente, recusar conhecimento.”

(STJ – Rcl 4640/CE – 3ª S. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe de 20.6.11)

 

Do voto do Min. Gilson Dipp, extraem-se as seguintes passagens:

“Quanto ao mérito, o que pretendem os reclamantes, em suma, é obter por esta via o efetivo cumprimento do acórdão no habeas-corpus concedido pelo STJ por via do qual foi anulado o processo da ação penal.

A noção de reclamação que a Constituição estabeleceu parece afinar-se com a ideia de repressão à indevida usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça (como assentado, por exemplo, na Reclamação nº 3.582⁄DF, Arnaldo Lima, 3ª Seção, 9.12.2009) e não tanto ao descumprimento de suas decisões.

Por isso, a reclamação em princípio não se prestaria como meio de execução de decisões. Vários precedentes, contudo, indicam que o descumprimento de decisão judicial dos Tribunais Superiores pode, em certas situações, sujeitar-se a esse controle.

No caso presente, atribui-se ao Juiz Federal da 11ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará o não cumprimento do acórdão no HC 150.608⁄CE — impetrado contra ato do TRF⁄5ª Região –, pelo qual foi anulado o processo que se encontra na primeira instância, desde o recebimento da denúncia.  (…)

Afirma-se que o Juiz da 11ª Vara Federal justificou esse procedimento por ter de aguardar eventuais recursos do MPF e por não ter, até então, recebido cópia oficial do inteiro teor do julgado, posto que a simples notícia do resultado era-lhe insuficiente para a compreensão do conteúdo e extensão do julgado. É possível compreender a justificativa do magistrado, pois para o exato cumprimento do acórdão como ordem judicial, talvez fosse necessário saber os precisos termos, e a interpretação respectiva da concessão, assim como os fundamentos correspondentes. (…)

De qualquer sorte, ainda que a mera comunicação por telegrama do resultado do julgamento, mesmo direta, de fato se revelasse insuficiente para o efetivo cumprimento do acórdão – seja ao Tribunal impetrado, seja ao Juízo que tocará, afinal, o atendimento da ordem-, bastaria a indicação de que o inteiro teor estava disponível na página do STJ, na Internet, além de ter sido trazido pelas partes ao conhecimento do Juiz. (…)

Ou seja, o acórdão poderia ser cumprido desde logo, mas deveria ser comunicado com a remessa do inteiro teor, na falta do qual o Tribunal impetrado, ou o Juiz, poderia “aguardar o recebimento da cópia do acórdão para efeito de renovação dos atos processuais”, em especial se fosse (como era) o caso de anulação do processo.

Em face disso, o magistrado não poderia recusar o razoável conhecimento da ordem do Tribunal Superior e dela poderia ter dado imediato cumprimento, daí porque parece estar patente uma situação em que é preciso preservar a garantia da autoridade da decisão do STJ, e acolher o pedido nos termos do parecer do MPF.”

Ainda, do voto do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, em tom mais objetivo, consta:

Neste caso, numa ordem mandamental num habeas corpus, o Juiz se atreve a dizer que vai aguardar o trânsito em julgado? Foi isso? Se esse procedimento pegar, Presidente, desaparecerá completamente, não só a autoridade do Tribunal, o que já seria um desastre, mas desaparecerá a eficácia das ações mandamentais. Em habeas corpus se aguardar o trânsito em julgado! Aguardar o inteiro teor dos votos dos Ministros! Aguardar o exaurimento do prazo recursal do Ministério Público, que, eventualmente, pode impugnar a decisão! Foi isso o que acorreu? Eu, Senhor Ministro Jorge Mussi, não esperava viver para ver isso na Justiça Federal, na Justiça Federal da minha terra, uma coisa absolutamente incogitável, a meu ver. Além de o Juiz ter sido comunicado por telegrama que o inteiro teor estava no sítio do Superior Tribunal de Justiça e a parte o ter feito juntar aos autos? (…)Penso que devo dizer que esse não é o comportamento da Justiça Federal da 5ª Região. A 5ª Região sempre foi, e é, absolutamente atenta a cumprir as ordens do STJ, seja dada em que sede for, até por telefonema. (…)Dai por que, Senhor Ministro Gilson Dipp, acompanho inteiramente V. Exa. E, ao invés recomendar ao Juiz que cumpra a ordem, eu substituiria por determinar. Porque recomendação é como café, toma quem quer. Aí não se cumpre. A determinação não, a determinação é algo mais imperativo. Confesso-me pasmo diante dessa reação do Juiz a uma ordem do Superior Tribunal de Justiça” (Destaques não originais).

Por fim, do voto do Des. conv. do TJRJ, Adilson Vieira Macabu, lê-se:

“Vivemos na era da informática e da evolução tecnológica. Na verdade, o que está caracterizado, no presente caso, é o nítido empenho do Magistrado em descumprir a decisão do Superior Tribunal de Justiça. Trata-se de atitude inconcebível, porquanto implica a violação flagrante e inaceitável do dispositivo constitucional, no caso, o art. 105, inciso I, letra f, da Constituição Federal de 1988, ao estatuir que cabe reclamação para garantir a autoridade das decisões desta Corte. E, como discutiu-se a possibilidade, que se encontra no teor do acórdão, acerca do eventual oferecimento de nova denúncia, o mencionado Juiz, a meu ver, não pode mais atuar no processo, vez que perdeu a imparcialidade inerente ao exercício da jurisdição. No Estado Democrático de Direito, é inadmissível que alguns membros do judiciário insistam, indevidamente, em assumir posições pessoais ao julgarem feitos que lhe são submetidos. O magistrado existe para solucionar os conflitos de interesses e, não, para direcionar soluções ditadas por questões subjetivas.”

 

N o t a s

 

            O fato acima relatado pode parecer incomum, mas não é. Quando uma decisão dada pelas instâncias superiores tem o condão de anular toda uma ação penal – algo grave – o Juízo de 1º grau pode sentir-se inclinado a aguardar o trânsito em julgado do acórdão para, somente após, proceder sua execução. Ocorre que isso é ilegal.

            A Lei nº 8.038/90, art. 27, §2º, estatui que os recursos especial e extraordinário não têm efeito suspensivo. Tampouco o tem o recurso de embargos de declaração. Logo, uma decisão dada pelo STJ (bem como pelo STF) deve ser, via de regra, imediatamente cumprida. Qualquer atraso na obediência a essa decisão implica o desrespeito à autoridade da instância superior.

            Sabe-se que, como sustenta Aury Lopes Jr., não existe o poder geral de cautela no processo penal: “no processo penal, forma é garantia. Logo, não há espaço para ‘poderes gerais’, pois todo poder é estritamente vinculado a limites e à forma legal. (…) O que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, é a intervenção estatal e não a liberdade individual” (LOPES JR., Aury. A (in)existência de poder geral de cautela no processo penal. In: Boletim IBCCrim, São Paulo, a. 17, n. 203, out./2009, p. 8. Itálicos nossos). Isto é, serão descabidas as justificativas do Juízo de 1º grau, ao não cumprir a decisão colegiada, no sentido de que visa evitar vislumbrado prejuízo ao andamento do processo, à garantia patrimonial do Estado, ao prazo de recurso da acusação etc. A decisão da instância superior é cogente, não comporta recurso com efeito suspensivo e, salvo condição estabelecida nela própria, deve ser executada o quanto antes.

            Como se frisou acima, no voto do Min. Napoleão Nunes Maia Filho, eventual proliferação de decisões que se recusam a cumprir acórdãos de instância superior põe a risco não somente a organização hierárquica do Poder Judiciário, como também a própria eficácia das decisões judiciais. E isso, em ações mandamentais de conteúdo indisponível, como o são as de habeas corpus, é ainda mais grave. Em cada caso, deverá ser averiguado, ainda, se o Juiz que se recusou a aceitar a autoridade da ordem superior ainda permanece imparcial: a insistência em não reconhecer o direito do acusado pode muito bem ser um sintoma de favorecimento à pretensão condenatória – algo inadmissível.

 

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