Aplicação do princípio da insignificância em crimes contra a Administração Pública

 

            A análise prática do princípio da insignificância pode (ou melhor, deve) sofrer a influência de várias circunstâncias do caso concreto, que ditarão sua aplicação ou seu afastamento. Veja-se o caso abaixo:

Habeas Corpus. 2. Subtração de objetos da Administração Pública, avaliados no montante de R$ 130,00 (cento e trinta reais). 3. Aplicação do princípio da insignificância, considerados crime contra o patrimônio público. Possibilidade. Precedentes. 4. Ordem concedida.”

(STF – HC 107370/SP – 2ª T. – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJe de 22.6.11)

 

            Do voto do relator, eminente Min. Gilmar Mendes, extraem-se as seguintes passagens:

“Consigno que, no caso concreto, discute-se a possibilidade da aplicação do princípio da insignificância, em virtude da prática de peculato, no sentido de terem sido subtraídos objetos pertencentes à Administração Pública, avaliados em R$ 130,00 (cento e trinta reais). Evidencio, inicialmente, que, após um longo processo de formação, marcado por decisões casuais e excepcionais, o princípio da insignificância acabou por solidificar-se como importante instrumento de aprimoramento do Direito Penal, sendo paulatinamente reconhecido pela jurisprudência dos tribunais superiores, em especial a deste Supremo Tribunal Federal. Por isso, é que, em princípio, reconheço a plausibilidade da tese sustentada pela impetrante. Em casos análogos, esta Suprema Corte tem reconhecido, por inúmeras vezes, a possibilidade de aplicação do referido princípio. (…)

Para que seja razoável concluir, em um caso concreto, no sentido da tipicidade, mister se faz a conjugação da tipicidade formal com a tipicidade material, sob pena de abandonar-se, assim, o desiderato do próprio ordenamento jurídico criminal. Evidenciando o aplicador do direito a presença da tipicidade formal, mas a ausência da tipicidade material, encontrar-se-á diante de caso manifestamente atípico. Não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a subtração de objetos da Administração Pública, avaliados no montante de R$ 130,00 (cento e trinta reais), e quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade.  Isso porque, ante o caráter eminentemente subsidiário que o Direito Penal assume, impõe-se a sua intervenção mínima, somente devendo atuar para a proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. Em outras palavras, não cabe ao direito penal – como instrumento de controle mais rígido e duro que é – ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado.

Assim, só cabe ao Direito Penal intervir quando outros ramos do direito se demonstrarem ineficazes para prevenir práticas delituosas (princípio da intervenção mínima ou ultima ratio), limitando-se a punir somente as condutas mais graves dirigidas contra os bens jurídicos mais essenciais à sociedade (princípio da fragmentariedade). (…)

Ademais, esta Corte tem entendido que, para a incidência do princípio da insignificância, alguns vetores devem ser considerados, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica causada (Cf. HC n. 84.412/SP, rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, unânime, DJe 19.11.2004).

Diante do exposto, destaco que, no caso em apreço, o prejuízo material foi insignificante e que a conduta não causou lesividade relevante à ordem social, havendo que incidir, por conseguinte, o postulado da bagatela. Ressalto, ademais, que esta Corte já teve a oportunidade de reconhecer a possibilidade de incidência do princípio da insignificância, considerados crimes contra a Administração Pública.”(destacamos)

 

N o t a s

 

            O tema do princípio da insignificância já foi tratado na Decisão em Destaque do dia 21 de maio de 2011. Naquela ocasião, indicou-se o acórdão do HC 106094, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 20.5.11, cujo ponto de relevância foi o valor – R$ 382,00 (trezentos e oitenta e dois reais) – um pouco mais alto do que o verificado na média de casos nos quais a conduta é atípica.

            Aqui, diferentemente, trata-se de hipótese em que, muitas vezes, o Judiciário nega a possibilidade de se atribuir insignificância ao fato independentemente do valor em questão: a de crime contra a Administração Pública. As duas instâncias anteriores, na espécie, negaram a aplicação do princípio por esse motivo. A rigor, o STJ adota tal posição de forma pacífica: “esta Corte mantém entendimento de que não se aplica o princípio da insignificância nos crimes praticados contra a Administração Pública, devendo-se resguardar sobretudo a moral administrativa” (STJ – HC 147542/GO – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe de 27.5.11. Itálicos nossos).

            Mas o fato é o que fundamento do resguardo da “moralidade administrativa” é por demais abstrato para permitir a deflagração de ação penal contra o sujeito que não fez mal a ninguém. Tomando-se em conta os critérios que norteiam a lógica da irrelevância penal – como sejam, “a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica causada” – basta avaliar se, independentemente de estar em jogo a Administração Pública, tais condições são ou não preenchidas.

E, “no caso em apreço“, como ponderou o STF, “o prejuízo material foi insignificante e a conduta não causou lesividade relevante à ordem social“, sendo indiferente, assim, que se trate de bem da Administração Pública. Aliás, o fato de que o bem era público deveria pesar em favor do acusado, já que R$ 130,00 (cento e trinta reais) são muito menos importantes ao Estado do que à grande maioria dos cidadãos brasileiros.

Calha ponderar: talvez o STJ esteja emprestando à “moralidade administrativa” um valor maior do que o que ela tem, máxime se comparado a um direito fundamental acolhido em nossa Carta Política como cláusula pétrea – a dignidade da pessoa humana.

 

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