Acórdão que adota sentença como razões de decidir: inidoneidade

 

A decisão do Superior Tribunal de Justiça cuja ementa está transcrita abaixo trata de um grave vício de fundamentação cada vez mais comum: a adoção, pelos tribunais, da sentença de primeira instância ou do parecer do Ministério Público como razões de decidir. Veja-se:

HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. ARGUIÇÃO DE NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. ACÓRDÃO QUE ADOTA COMO RAZÕES DE DECIDIR MOTIVAÇÃO CONTIDA NA SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU E EM PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA. EIVA RELATIVA À AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO RECONHECIDA. PEDIDO REMANESCENTE PREJUDICADO. CONCESSÃO DA ORDEM.

1. Não se desconhece a existência de inúmeros julgados, tanto desta Corte Superior, quanto do Supremo Tribunal Federal, que afastam a alegação de nulidade pela suposta ofensa ao artigo 93, inciso X, da Constituição Federal, quando a autoridade judiciária, ao fundamentar sua decisão, reporta-se à sentença ou ao parecer ministerial.

2. Contudo, conquanto se admita que o magistrado reenvie a fundamentação de seu decisum a outra peça constante do processo, e ainda que se permita que a motivação dos julgados seja sucinta, deve-se garantir, tanto às partes do processo, quanto à sociedade em geral, a possibilidade de ter acesso e de compreender as razões pelas quais determinada decisão foi tomada.

3. Na hipótese dos autos, o julgado colegiado não atende ao comando constitucional, porquanto não apresenta de forma mínima os fundamentos que ensejaram a negativa de provimento do apelo interposto pela defesa do paciente, de modo que o reconhecimento de sua nulidade é medida que se impõe.

4. Reconhecida a eiva do acórdão impugnado, resta prejudicado o pedido remanescente constante da impetração, referente à suposta fixação de regime mais gravoso como o inicial para o resgate da reprimenda corporal, já que o julgamento do apelo defensivo deverá ser refeito, com a efetiva exposição dos fundamentos da decisão.

5. Ordem concedida para, reconhecendo a nulidade do acórdão por falta de motivação, determinar que seja realizado novo julgamento da apelação interposta pelo paciente, promovendo-se a devida fundamentação do decisum.”

(STJ – HC 176238/SP – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe de 1º.6.11)

  

            Do voto do eminente relator, Min. Jorge Mussi, consta:

“No que tange à indigitada nulidade do julgado oriundo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a impetrante argumenta que o relator do mencionado recurso somente teria se reportado à motivação da sentença condenatória, sem sequer transcrevê-la, o que violaria o artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal.

Com efeito, na Constituição Federal, a imprescindibilidade de fundamentação das decisões judiciais mereceu destaque, constando expressamente do inciso IX do artigo 93: (…)

A necessidade de motivação das decisões justifica-se na medida em que só podem ser controladas ou impugnadas, se as razões que as justificaram forem devidamente apresentadas. (…)

Assim, não restaram atendidos os requisitos impostos pelas Cortes Superiores para que se admita a chamada motivação ad relationem, vale dizer, aquela em que o juiz não elabora uma justificação autônoma, remetendo à motivação constante de outra decisão ou parecer.

Isso porque, conquanto se admita que o magistrado reenvie a fundamentação de seu decisum a outra peça constante do processo, e ainda que se permita que a motivação dos julgados seja sucinta, deve-se garantir, tanto às partes do processo, quanto à sociedade em geral, a possibilidade de ter acesso e de compreender as razões pelas quais determinada decisão foi tomada. (…)

Tem-se, então, que o decisum colegiado ora questionado não atende ao comando constitucional, porquanto não apresenta de forma mínima os fundamentos que ensejaram a negativa de provimento do apelo interposto pela defesa do paciente, de modo que o reconhecimento de sua nulidade é medida que se impõe. (…)

Ante o exposto, concede-se  a ordem para, reconhecendo a nulidade do acórdão por falta de motivação, determinar que seja realizado novo julgamento da apelação interposta pelo paciente, promovendo-se a devida fundamentação do decisum.”

  

N o t a s

 

            O art. 381, III, CPP, prescreve que “a sentença conterá a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão“. Em se tratando de ordenamento jurídico que respeita o duplo grau de jurisdição, parece ser evidente a necessidade de o acórdão cumprir o mesmo requisito previsto para a sentença. O Tribunal que analisa o pleito recursal deve, sob pena de nulidade do ato decisório, indicar os “motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão“.

Considerando-se o efeito devolutivo da apelação, por exemplo, é certo que o órgão julgador deve reanalisar, de forma percuciente, todas as circunstâncias do caso, realizando novo enfrentamento de todas as teses, sejam acusatórias ou defensivas. O acórdão que se limita a transcrever os termos da sentença, a ela se reportando sem qualquer exame autônomo das teses formuladas pelas partes, não está adequadamente fundamentado.

Entendimento contrário nega vigência à CF, art. 93, IX, e ao CPP, art. 381, III. Um acórdão confirmatório de condenação deve, assim como aquele que reforma uma sentença, revisar os termos adotados na sentença. Deve haver o cotejo específico da sentença com a prova dos autos e com as razões e as contrarrazões recursais, sendo absolutamente inadmissível a cômoda repetição dos termos da sentença ou do parecer ministerial, sob pena de violação ao próprio duplo grau de jurisdição.

O stj já decidiu, em outra oportunidade, no mesmo sentido:

“HABEAS CORPUS. SENTENÇA MANTIDA EM SEDE DE APELAÇÃO. ABSOLUTA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. ACÓRDÃO QUE SE LIMITA A MANTER OS FUNDAMENTOS DO JUIZ E ADOTAR O PARECER MINISTERIAL. NULIDADE. ORDEM CONCEDIDA.

1. O dever de motivar as decisões implica necessariamente cognição efetuada diretamente pelo órgão julgador. Não se pode admitir que a Corte estadual limite-se a manter a sentença por seus próprios fundamentos e a adotar o parecer ministerial, sendo de rigor que acrescente fundamentação que seja própria do órgão judicante.

2. A mera repetição da decisão atacada, além de desrespeitar o regramento do art. 93, IX, da Constituição Federal, causa prejuízo para a garantia do duplo grau de jurisdição, na exata medida em que não conduz a substancial revisão judicial da primitiva decisão, mas a cômoda reiteração. 3. Ordem concedida.” (STJ – 6ª T. – HC 76850/SP – Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura – DJe de 31.5.10. Destacamos.)

            No seu voto do precedente logo acima, a Ministra relatora afirma que “não é de se admitir a construção lógica calcada em argumentos fornecidos por órgão que, inclusive, corporifica um dos polos da relação jurídico-processual“. Nada mais coerente.

 

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