Castrinho, refém do medo

Quando saia para trabalhar, trancava a mulher dentro de casa. Um dia contou a mania numa roda de conversas no bar e assustou os amigos. – Você é louco? Por que isso, Castrinho?, indagou Edgar, o dono do boteco. Castrinho deu de ombros, tomou um gole de cerveja daqueles de deixar o bigode cheio de espuma, limpou a garganta e mandou ver. – Veja bem, não tem nada que ela precise lá fora: a geladeira e a despensa estão cheias, na TV todos os canais disponíveis, telefone à disposição, as contas todas pagas, ela não precisa sair, justificou.

-Ah, mas que conversa é essa, trancar uma pessoa como se fosse um passarinho na gaiola, debochou Edgar. Castrinho perdeu as estribeiras: – Você não lê os jornais? Só tem louco aí pela rua, desabafou.

O sujeito era mesmo ressabiado com a questão de segurança, por uma razão muito simples: paranoia do emprego anterior. Tinha sido carcereiro por dez longos anos. Mesmo com aquele físico de jogador de baralho, dizia que dava conta de recado. Para evitar que os presos aloprassem, mantinha rédeas curtas. – Não importava o tamanho, grudava pelo cabelo e metia um chutão na canela. O cara se dobrava na hora, assegurava Castrinho.

Esta história me lembrava de um sujeito com quem conversei no biarticulado Santa Cândida, que se dizia policial à paisana. Era do tipo 2 x 2, alto e fortão e ficava falando baixo sobre os assaltos constantes no coletivo, enquanto passeava os olhos pelos passageiros. – Eles (os bandidos) andam bem vestidos para disfarçar, mas assaltante eu conheço de longe, garantia. A técnica deste ‘policial‘ era diferente: – Dou um soco na testa com toda a força, o cara fica zonzo e aí é só colocar as algemas, ensinava. Nossa, velho!

É o tipo de atividade em que não se coleciona amigos. Por isso, quando Castrinho estava no boteco aflorava uma mania de perseguição quase que incontrolável. Já sentava sempre perto da porta de costas para a parede de modo que tivesse a visão total do bar. Lá pela quarta cerveja começava a repetir: – Tem um cara me cuidando ali, usando a gíria da cadeia. A gente procurava se havia alguém à espreita, mas nunca vimos nada.

Certa vez encontrei Castrinho e a esposa na rua. Abraçava-a como se no instante seguinte fosse aplicar um mata leão na garota. Era uma moça morena e sorridente, muito bonita. Quando me viu, Castrinho parecia querer esconder a esposa. Mal cumprimentou e apressou o passo. Cobrei a desfeita e ele alegou prontamente que estava com pressa, pois pretendia passar no banco ainda. Pois, sim!

Um dia descobrimos que o casal morava num prediozinho de três andares e caímos de pau em cima do Castrinho. Afinal, era uma irresponsabilidade trancar uma pessoa em um prédio. E se pegasse fogo? Castrinho ficou branco, pela primeira vez a ficha tinha caído. Sem querer ressuscitamos uma história dolorosa para o teimoso carcereiro. Ele tinha perdido o pai numa situação parecida. A família trancava o velho no sobrado para tentar frear o seu vício pela bebida. Mas o danado sempre conseguia contrabandear as biritas. Um dia foi despertado do porre com um princípio de incêndio, causado por um curto circuito. Na fuga, caiu da escada e ficou estatelado no térreo com um corte enorme na cabeça. Os bombeiros chegaram a tempo de apagar o fogo, mas tarde demais para salvar o pai de Castrinho, que morreu de hemorragia. Agora a sua obsessão cega poderia criar outra armadilha fatal e reeditar a tragédia com a esposa. Sai dessa vida, Castrinho!

*Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.