Cadê o meu jornal?

Pedala, Espa! Espa era diminutivo de ‘Espantalho‘, apelido de um garoto entregador de jornal. O garoto era ‘destalado‘, como se diz no interior: magro e alto. E sabe como é, a turma não perdoa. Espa fazia as entregas de madrugada: enfrentava chuva, frio, cachorros vira-latas. O trânsito até que era tranquilo. Naquele tempo a cidade ainda não era o zumbi de hoje.

Mas era só o Espa virar as costas e os jornais começavam a sumir das casas dos assinantes. Quando chegava na sede do matutino, já era recebido aos berros pelo seu Fritz, um alemão parrudo que cuidava da expedição. ‘Assinantes estarrr reclamando‘, dizia Fritz, apanhando no português, apesar de ter deixado a Alemanha há mais de duas décadas.

– Entreguei tudo direitinho, Seo Fritz, retrucava Espa. E ficava aquele dilema danado. Fritz levava esporro dos assinantes, que não admitiam ficar sem o sagrado exemplar e o alemão partia pra cima de Espa. O diacho era que o menino era bom funcionário, não dava o cano nem com tempo ruim. O time ali era bom: Tinha o Tecão, um polaco de pele rosada. Gostava de contar vantagem que fazia bico numa churrascaria nos finais de semana para complementar o mirrado salário de entregador. No fim da noite, o dono da churrascaria deixava para ele as sobras dos espetos. Era o emprego dos sonhos!

Todos vinham de famílias pobres e só encaravam a dureza de entregar jornais para poder comprar uma bicicleta. Ficavam meses pagando aquele carnezão e não podia falhar nas prestações porque os fiadores eram os pais e aí já viu, o pau comia.

Era tanto esforço para fazer as notícias chegarem ao assinante que não se admitia o sumiço de jornais na região central. Fritz não se conformava. Trocou uma ideia com Abílio Kasinski, o maior distribuidor de jornais da região e decidiram fazer uma campana. Kasinski era o tipo do cara ligeirinho, sempre com um meio sorriso no rosto. Este esforço para demonstrar simpatia acabava tendo efeito inverso. Mais parecia um alerta do tipo: cuidado: vou te sacanear! Andava sempre arrumadinho, sapato brilhando, calça e camisa impecáveis, sempre com um carro novo, tinindo.

Na primeira campana que fizeram na Dr. Colares, uma rua com casarões antigos pegaram no pulo o ‘Tinhosinho‘. O apelido do garoto fazia jus à fama. Ele usava uma antena de rádio de carros, entortava a ponta e tirava o jornal por debaixo da porta do assinante. Quando a pessoa ia buscar o jornal já era.

Naquele dia Tinhosinho apanhou de antena, chegou a urinar nas calças. Dado o corretivo, os assinantes voltaram a receber o jornal. Mas volta e meia, Kasinski pegava o mesmo Tinhosinho ou outro moleque da gangue pilhando os assinantes e dá-lhe surras. Até que um dia, Kasinski foi tomar uma canas pelas voltas do mercado municipal. Tinha outros botecos menos perigosos, mas a cerveja parece que tem mais sabor em dados inferninhos. E Kasinski lá todo arrumadinho, chamava a atenção. Deu um azar daqueles quando foi reconhecido por um dos moleques que surrou anos atrás. Quem bate esquece, quem apanha jamais. Reuniram uma turma e deram um pau no Kasinski e amigos de copo, que ficou na história. Foi um troco bem dado, mas não teve nada de insano como nos tempos de hoje, que qualquer coisinha já jogam álcool, tocam fogo e ficam assistindo de camarote. Nada disso. Era um tempo romântico aquele.

*Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.