O que se passa entre os cobertores

Hoje em dia todos sabem que o sono é uma atividade humana complexa, de maneira alguma um simples repouso. No sono finalmente estamos com nós mesmos e mais ninguém. Admirado com curiosidade e respeito desde a antiguidade por filósofos e estudiosos, o sono e os sonhos sempre foram inacessíveis a qualquer contato, exceto à especulação. Não mais. O eletroencefalograma entrou em uso clínico na década de 50. Na década de 70 foram montados os primeiros laboratórios de polissonografia nos USA. Na década de 90 chegaram ao Brasil. Hoje, só em Curitiba existem 4, onde as pessoas dormem ligadas a vários tipos de sensores, e têm seu sono gravado em vídeo e analisado em detalhe. Nestes 30 anos uma grande quantidade de conhecimento se acumulou.

Existem 5 tipos diferentes de sono, chamados fases 1, 2, 3, 4, e a fase R.E.M. A fase 1 é aquele estado no qual ficamos quando acordamos e resolvemos dormir mais um minutinho até a hora da largada da fórmula 1 no domingo cedo. Nesta fase nós facilmente nos enganamos sobre estarmos acordados ou dormindo, nem bem lá nem bem cá. A atividade cerebral, refletida pelo eletroencefalograma, fica mais lenta e menos organizada. Muitas das pessoas que se queixam de insônia grave e dizem que passam a noite inteira acordadas estão na verdade entre as fases 1 e 2 a maior parte do tempo. O problema destas pessoas é que o cérebro contabiliza isto como sono, e não provoca uma maior necessidade de sono para a noite seguinte. A fase 2, durante a qual ainda é fácil ser acordado, é exuberante no eletroencefalograma de adultos e crianças, com belas e grandes ondas, outras menores, os fusos, toda esta atividade saindo bem pelo topo da cabeça. As fases 3 e 4 são sono profundo. O eletroencefalograma mostra grandes ondas lentas ocupando todo o cérebro, e pode cair a maior trovoada que a gente não fica nem sabendo.

Na fase R.E.M. os olhos se mexem em saltos rápidos de um lado para o outro, a respiração fica regular, o corpo inerte devido a uma paralisia muscular, e nós sonhamos. É a fase dos Rapid Eye Movements. Durante uma noite de 8 horas de sono, a pessoa passa pela seqüência de fases 2 ou 3 vezes, indo de 1 a 4, e voltando de 4 a 1, passando pela REM depois de passar pela fase 4. Portanto, sonhamos umas 2 ou 3 vezes cada noite, e quase acordamos depois de sonhar cada vez. Portanto, uma boa noite de sono é composta de inúmeros itens, existem até regras chamadas de higiene do sono (veja em www.unineuro.com.br) que ajudam as pessoas a atingir este objetivo.

Sem dúvida os sonhos são um dos fenômenos mais impressionantes que ocorrem no ser humano. São de certa forma reminiscentes de certas crises de algumas formas de epilepsia, ou de enxaqueca, ou de ataques de pânico. Vistos de outra maneira parecem parte de um mundo com outras regras, caótico, definitivamente longe de nosso controle. Há cem anos, na virada do século XIX para o século XX, Freud formulou a hipótese de que os sonhos seriam imagens vindas do nosso inconsciente, representando nosso medos, desejos e traumas. O crucial da hipótese de Freud, e um dos pilares principais da psicanálise, é que os sonhos teriam um significado psicológico muito importante, relacionado com a estrutura da personalidade. Durante estes 100 anos centenas de milhares de sessões de psicanálise foram utilizadas para interpretar sonhos de acordo com a hipótese de Freud. Muitos que conhecem a obra do velho Freud, inclusive este autor, acham que sua obra prima é “A interpretação de sonhos”. Porém, a psicanálise não comprovou suas teorias de forma científica.

Foi nos laboratórios de polissonografia que neurologistas acabaram estabelecendo que sonhos não são nada mais que um ruído mental, como o barulhinho do processador de um computador. O cérebro revisa o que ocorreu durante o dia, compara com o que tem arquivado, arquiva mais, e assim por diante, num serviço que é contínuo durante toda a vida da pessoa. Sonhos são um produto do acaso destas comparações de imagens. Porém, resultados de pesquisas mais recentes voltam a um campo semelhante ao proposto por Freud: talvez os sonhos tenham uma função, como parte de um termostato emocional, de alguma maneira ligados à intensidade emocional de nossas experiências. A simples existência de sonhos indica que a visão tem alguma importância na organização de nossas emoções. Muitos sonhos tem grande conteúdo emocional, embora sejam uma experiência completamente visual. Se acordamos logo após um sonho de forte conteúdo emocional, corremos o risco de permanecer naquele estado, alegre ou triste, durante todo o dia.

Estudos de neuroimagem chamados de PET e SPECT indicam que durante a fase REM o sistema límbico funciona muito, enquanto que o córtex pré-frontal, aquele que cuida da razão e do intelecto, está parado. O sistema límbico é uma parte mais antiga do cérebro humano, que existe em cachorros e gatos. No ser humano estas áreas são diretamente ligadas às emoções mais fora de nosso controle, aquelas que temos gravadas como parte de nossa personalidade da maneira mais profunda. Os resultados destas pesquisas parecem indicar que os sonhos são um ruído resultante do processamento das imagens do dia, ou talvez da semana, do mês, que inclui sua comparação com experiências anteriores, e eventual arquivamento. Esta linha de raciocínio indica que os sonhos podem ter uma ligação forte com a memória, pelo menos com a memória emocional.

Infelizmente sonhos bons são raros, tanto que nem existe uma palavra que seja o contrário de pesadelo, pelo menos nas línguas que o autor conhece. Quem já teve sonhos bons, acordou no meio deles, tentou dormir de novo e continuar, sabe com um pouco de calma você pode terminar, levar às últimas consequências, aquele namoro que só ocorre em fase REM. Os pesadelos parecem ser uma maneira de lidarmos com o conteúdo emocional do que se passa durante o período de vigília. Não exatamente naquele dia, pois sonhos freqüentemente estão completamente deslocados no tempo. Parece que quando estamos conscientes vamos tocando as coisas de acordo com nossos conceitos conscientes. Não temos tempo nem as condições para considerarmos as reverberações emocionais do que vai ocorrendo.

E os pesadelos recorrentes? Existem alguns que são até comuns a muitas pessoas, como aquele de se sentir caindo no vazio, despencando até que o coitado acorda molhado de suor. Ou o outro da pessoa estar correndo para pegar um avião, e já passou a hora do embarque e ele ainda está preso no tráfego, e não anda, e acorda todo molhado. Em regra geral, pesadelos em excesso, ou mesmo sonhos de qualquer tipo em excesso, indicam que a pessoa está lembrando mais dos sonhos do que devia. Para lembrar dos sonhos a pessoa precisa acordar. Portanto, sonhos em excesso significam um padrão de sono muito superficial. O ambiente e a higiene de sono podem não estar bem acertados. Ou a pessoa pode estar sofrendo de ansiedade. Aliás os tipos comuns de pesadelos descritos logo acima são muito sugestivos de que o freguês esteja no mínimo num período de ansiedade. No máximo, que ele seja um ansioso e precise de tratamento.

Então, será que a ciência do século XXI vai comprovar as teorias do velho Freud? Sim, no sentido de que os sonhos tem a ver com nosso inconsciente e com nossas emoções. Porém não são tão importantes nem mexem com porções tão estruturais de nossas personalidades. Afinal, muita gente passa 10 anos sem lembrar de nenhum sonho. Uma revisão do processo de arquivamento de memória visual e emocional é a mais provável função dos sonhos.

Paulo Rogério M de Bittencourt

é médico em Curitiba,
www.unineuro.com.br

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