Biologia molecular seqüencia genoma de vírus

A biologia molecular brasileira promoveu o casamento perfeito ao seqüenciar o genoma do vírus da lagarta da soja, objeto do mais bemsucedido controle biológico de uma praga no mundo. Com o uso de um inimigo natural da lagarta, o programa é considerado o maior do mundo em área tratada com um único agente de controle biológico.

O mapa genético do Baculovírus anticarsia, com seus 133 mil pares de base, foi seqüenciado no Laboratório de Evolução Molecular e Bioinformática (Lemb), da Universidade de São Paulo (USP), unidade de referência viral no País. O trabalho, que teve a parceria de outras instituições de pesquisa, foi publicado no final de 2003 e permitirá estudar, entre outras variantes, os fatores responsáveis pela virulência do microorganismo na cultura da soja.

É a primeira vez que se seqüencia um vírus no País, o que credencia o Lemb para a continuidade do mesmo trabalho com as variedades genéticas de outros vírus: o HIV?1, tipo de vírus da aids mais comum no Brasil; o HCV, causador da hepatite C; o hantavirus, que provoca síndrome pulmonar; e o vírus respiratório sincicial, responsável por infecções do aparelho respiratório principalmente em crianças. O laboratório participa, no âmbito do Programa Genoma, da Rede de Diversidade Genética de Vírus. Só o projeto Genoma Vírus recebeu em 2000 recursos da ordem de US$ 8 milhões, o que permitiu dotar o Lemb da infra-estrutura necessária ao seqüenciamento.

“O baculovírus entrou como subprojeto e o terminamos primeiro. Para continuar o trabalho, temos cinco seqüenciadores automáticos e equipamentos para clonagem. Além disso, desenvolveu-se um trabalho de formação de pessoal, com a especialização de profissionais em bioinformática, trabalho essencial em seqüenciamento de genoma”, conta o virologista responsável pelo projeto baculovírus, Paolo Zanotto. Para seqüenciar o genoma da principal praga da soja no país, a equipe do Lemb teve a parceria dos laboratórios de biologia molecular das universidades de Mogi das Cruzes (UMC), de Brasília (UnB), da Flórida (EUA) e também da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen). O custo isolado do trabalho com o baculovírus foi de R$ 57 mil.

Zanotto acredita que a repercussão no meio científico será bastante positiva para os laboratórios e unidades de pesquisa envolvidos, bem como para o próprio País. Afinal, é o primeiro vírus de DNA de grande tamanho seqüenciado. O DNA do Baculovírus anticarsia tem 10 vezes o tamanho do genoma do vírus do HIV. “É 10 vezes menor do que o de uma bactéria. Mas, em sendo de vírus, é um genoma complexo”, comenta o pesquisador e professor da USP. Zanotto vai mais além e acredita que o laboratório está credenciado inclusive para seqüenciar o genoma de bactérias, que, em geral, têm de um milhão a dois milhões de pares de base. Isso porque cada uma das bases do B. anticarsia foi seqüenciada pelo menos seis vezes. “Seqüenciamos, assim quase um milhão de pares de base”, conta Zanotto.

Há 25 genomas de baculovírus seqüenciados em todo o mundo, entre eles os Autographa californicaNPV, Bombyx nori NPV, Orgyia pseudosugata NPV, Lymantria disparNPV, Spodoptera exiguaNPV, Plutella xylostellaGV e Xestia nigrumGV. As siglas após os nomes científicos significam nucleopoliedrovírus e granulovírus. Esses são os dois gêneros da grande família de vírus oclusos, a Baculoviridae.

Eles têm dupla fita de DNA, envolta numa capa protéica, e infectam especificamente vertebrados, sendo a maioria da ordem Lepidoptera, ou seja, mariposas e borboletas. Cerca de 700 espécies de lagartas lepidopteras são suscetíveis aos baculovírus. Devido à estrutura poliédrica, o vírus que ataca a lagarta da soja pode ser chamado também de Anticarsia gemmatalisNPV, ou ainda, por extenso, Anticarsia gemmatalis nucleopolyhedrovirus. Os Baculoviridae levam, assim, o nome da praga alvo, acrescido de seu gênero. (ABR)

20% já estava determinada

Cerca de 20% do genoma do Baculovírus anticarsia já estavam seqüenciados antes do projeto, graças ao trabalho de duas biólogas da Embrapa Cenargem, especializadas em biologia molecular e virologia, Marlinda Lobo de Souza e Maria Elita Castro. “Eram seqüências isoladas, é bom ressaltar, trechos do vírus com os quais tínhamos interesse específico em trabalhar. Agora, com o genoma completo, temos os genes na devida ordem”, explica Marlinda.

Há pelo menos 10 anos, as duas estudam o B. anticarsia. Marlinda, por exemplo, faz o que se chama análise do perfil de restrição do DNA viral, desde 1984. Em resumo, é o estudo de possíveis alterações genéticas no vírus em campo. Seu trabalho consiste em analisar populações virais coletadas em campo, no mesmo lugar. Isso foi feito com as safras de 84 a 97. Em suas análises, Marlinda detectou variações no genoma e as registrou, mas só agora, conforme ela própria explica, poderá saber o porquê das alterações. “Com o genoma do vírus, poderemos ter uma idéia mais clara da relação entre ele e o inseto e se existe, por exemplo, uma co-evolução. Antes, só podia declarar que houve alterações, e dizer em que trechos ocorreram, mas não podia dizer por que”, conta.

Apesar das variações genéticas, a pesquisadora conta que o vírus continua virulento e específico contra a lagarta. Numa conclusão aparentemente óbvia, a lagarta também continua suscetível. “Acredito que as alterações, provavelmente, ocorreram como uma forma do vírus melhorar sua performance no campo”, conclui. O B. anticarsia tem ação ao entrar no intestino da lagarta. O poliedro, que é um cristal, é dissolvido, liberando uma proteína chamada poliedrina. Dentro da estrutura poliédrica, há vários viriuns, que são fitas de DNA empacotando uma molécula. Um poliedro pode ter centenas de viriuns. Quando entram no intestino da lagarta, com pH alto, os viriuns entram nas células do inseto e se replicam, formando novas partículas.

Produção em laboratório

A chamada produção in vitro, ou seja, em laboratório, é algo almejado pelos pesquisadores que trabalham no estudo de vírus. Mas a tarefa não é fácil, porque é difícil repetir o que ocorre na natureza, em se tratando de vírus. A dificuldade encarece a pesquisa, porque o próprio sistema de cultivo tem custo alto. A produção no laboratório, no entanto, é apontada como ideal por Marlinda, pois proporcionará, entre outros avanços no conhecimento sobre o vírus, buscar estratégias para evitar ou diminuir as alterações genéticas indesejáveis no contexto do controle biológico.

Armazenamento de vírus é o trabalho da bióloga Maria Elita Castro. Responsável pela Sub-rede de Coleções de Culturas de Microorganismos da unidade em que trabalha, ela sabe bem o que é dificuldade em se tratando de cultura em laboratório. Enquanto o Banco de Germoplasma de Microorganismos tem uma coleção expressiva de bactérias e fungos, o de isolados virais não passa de 60 e nem todos estão caracterizados. Os microorganismos armazenados são todos entomopatogênicos, ou seja, atacam algum inseto e, por isso, são de interesse para utilização em ações de controle biológico.

Depois da coleta, o vírus tem que ser identificado e caracterizado. A caracterização é feita por análise microscópica para que se confirme que vírus é aquele estudado. Nesse momento, o pesquisador realiza um estudo morfológico aprofundado. O Baculovírus anticarsia é isolado diretamente da lagarta, depois que se obtém um macerado com água. O material tem que ser purificado porque o caldo contém tecidos da lagarta, para que se chegue ao vírus propriamente dito. (ABR)

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