A ciência a serviço dos cabelos

São entre 100 e 150 mil fios de cabelo em uma cabeça normalmente ornada. A composição química é basicamente proteína (ca. 95% de queratina) secundariamente seguida por melanina, sais minerais e alguma gordura, com ênfase para as ceramidas (dímero de ácido graxo com esfingosina, um aminoalcool de cadeira longa) que confere o brilho e maciez. O corte transversal de um cabelo mostra uma secção elíptica entre 50 e 100 micrometros ou seja, são necessários 20 a 10 cabelos para perfazer um milímetro de espessura.

Cada centímetro quadrado de escalpo exibe entre 200 e 300 cabelos, os quais, individualmente, crescem a um ritmo de 1 cm por mês mas que cessa após o 3.º ano. Como perdemos entre 50 e 100 cabelos por dia, os bulbos capilares devem repor esta perda sob pena de começar a alopecia e depois desta a calvície. Um fio de cabelo saudável pode suportar um peso de 100 g e antes que o fio se rompa pode alongar-se em 50% do comprimento original, propriedade aquela bem explorada em alguns espetáculos circenses.

Os três tipos básicos de cabelo – caucasiano (europeu), asiático e africano diferem substancialmente em dois parâmetros básicos: o modo tridimensional como se arranjam as cadeias protéicas de queratina (aspectos conformacionais tais como a alfa-hélice e as folhas pregueadas) tendo em conta que o arranjo das protofibrilas no córtex do fio é preferencial na forma de hélice quádrupla auto-enovelada (estrutura quaternária) e o padrão de pigmentação ditado pelo balanço entre os dois pigmentos básicos eumelanina (escura) e feomelanina (clara) para cuja formação o aminoácido tirosina é essencial bem como a enzima tirosinase, embora o aminoácido cisteína também contribua na produção do 2.º tipo de pigmento. Complementarmente, o ritmo de crescimento também diferencia os 3 tipos básicos: no cabelo asiático é mais rápido (1,3 cm/mês) e no africano mais lento (0.9 cm/mês) mas é o caucasiano que apresenta a maior densidade de cabelos / área. O padrão de melanização capilar é um processo bioquímico similar ao que ocorre ao nível da pele que diferencia ruivos, louros, amarelos, índios, morenos, mulatos e negros. O caso de cabelos grisalhos é uma ilusão ótica da mistura de cabelos escuros e brancos. Os cabelos brancos, em si, surgindo com o avanço da idade, simplesmente correspondem à completa ausência de melanina, seja porque os melanócitos a deixaram de produzir seja porque eles não conseguem transferir o pigmento produzido para os queratinócitos.

O cabelo pode absorver até 30% de seu peso em água, o que torna um cabelo caucasiano louro e liso muito mais maleável ao pente ou escova em comparação com um cabelo negro encaracolado. Esta maleabilidade é explorada para se construir um higrômetro, aparelho para a medida da umidade do ar. Outra propriedade interessante é a reação do cabelo frente à eletricidade estática ou efeito triboelétrico. A aproximação com um objeto adrede friccionado faz os cabelos se ?ouriçarem?.

Um desejo de ordem cosmética muito comum e acometendo, em ordem decrescente de demanda, os negros e caucasianos é o alisamento dos cabelos, seja temporário ou para mais longa duração. Trata-se de operação a ser conduzida por profissionais com sólido conhecimento do objeto (cabelos) e também da química envolvida na operação (agentes alcalinos e/ou redutores). Em ordem de drasticidade de ação, o mais nocivo destes agentes (após a proibição do uso do formol) é o hidróxido de sódio ou soda. Segue-lhe o hidróxido de guanidina. Finaliza a série o tioglicolato de amônio, seletivo para a ruptura das pontes de enxofre, por se tratar de uma droga sabidamente redutora que então converte o dímero cistina (-cisteina-S-S-cisteina-) em duas cisteínas livres (-cisteina-SH). Tal efeito ?relaxador? das microfibrilas de queratina pode ser (em parte) revertido com a aplicação de um agente químico oxidante tal qual o peróxido de hidrogênio (água oxigenada) em meio acidificado, mas um cabelo de padrão escuro teria seu padrão de pigmentação afetado (descoloração). O que em termos bioquímicos fazem a soda, a guanidina e o tioglicolato é alterar substancialmente o conjunto de forças responsáveis pela estrutura fina da queratina do cabelo ou seja as pontes de hidrogênio (o que mesmo a água faz de forma muito mais suave), as pontes salinas e as ligações de enxofre. As demais ligações, ditas hidrofóbicas, são afetadas por instrumentos cosméticos diversos tais como compostos gordurosos ou derivados de petróleo. O SDS – sódio dodecil sulfato, um detergente muito comum em xampus, satisfaz esta característica por se tratar de um composto que deriva de um álcool graxo de cadeia longa (12 carbonos) mas também afeta as cargas nativas pois é um éster de ácido sulfúrico.

José Domingos Fontana (jfontana@ufpr.br) é professor emérito da UFPR junto ao Departamento de Farmácia, Pesquisador 1A do CNPq e 11.º Prêmio Paranaense em C&T.

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