Espiritismo à brasileira

As palavras surgem exuberantes como cascata em tempo de chuva e constroem, cuidadosamente, as 293 páginas do livro Espiritismo à brasileira. A autora é Sandra Jacqueline Stoll, doutora em antropologia social pela USP-Universidade de São Paulo e professora na UFPR-Universidade Federal do Paraná. Ela submete a narrativa de sua tese de doutorado, agora livro, a três personagens. Allan Kardec abre a discussão do tema, mas são os personagens Chico Xavier e Luiz Antônio Gasparetto, de crédito internacional, que ?moldam? sua pesquisa.

A comunicação entre vivos e mortos e a vida pós-morte são temas que sempre atraíram a atenção dos leitores. Prova disso é a vendagem de O livro dos espíritos (1857), escrito por Allan Kardec (1804-1869), que tem sua primeira edição esgotada no mesmo ano de sua publicação, com a conseqüente multiplicação de adeptos. Contrariamente ao senso comum, que define Kardec somente como codificador da doutrina, a análise apurada da autora lhe permite afirmar que, mais do que isso, ele cria o estatuto de ciência ao espiritismo que, no Brasil, tem uma história de aproximadamente 150 anos.

Nesse ínterim, propagam-se os centros espíritas. Com o tempo, o espiritismo sai do círculo da elite para se disseminar entre os segmentos populares. Vários estudos dedicam-se ao tema, especialmente aqueles que tratam das práticas mediúnicas de cura. A escritora observa, porém, uma lacuna na literatura antropológica, que consiste em não se dimensionar como o imaginário e as práticas católicas impactaram o espiritismo, portanto, a importância de reinterpretá-lo culturalmente como, aliás, ela o faz diligentemente no decorrer de sua obra.

A pesquisadora adota como estratégia de investigação a análise de relatos biográficos de personagens cujas histórias de vida e carreiras religiosas são representativas de momentos específicos da história do espiritismo no Brasil.

Chico Xavier: inspiração no modelo monástico de santidade católica

Chico Xavier (1910-2002) nasce de família católica e se converte posteriormente ao espiritismo. Com um pouco mais de vinte anos de idade começa a psicografar. Como outros médiuns, passa por um processo de aprendizagem, conforme orientam os espíritos. De início, sente dor no braço e alteração do estado psicológico. Diversas vezes Stoll relata o que disso pensa Chico Xavier: a tarefa é um fardo, pois em dois terços de sua vida os espíritos vivem no seu corpo. Ele não vive para si mesmo.

Seu guia espiritual mais freqüente é ?Emmanuel?, que não concede a Chico Xavier curas físicas em troca de seu trabalho. Ao contrário, tem poucos momentos de lazer, renuncia ao matrimônio e muitas vezes escreve das 19h até 1h da manhã páginas assinadas por seus guias.

Nos livros que psicografa por mais de 60 anos, proliferam temas diversos, mas, no final dos anos 50s e início da década seguinte, é convocado pelos espíritos a psicografar textos doutrinais de cunho científico. A partir dos anos 70s, começa a psicografar mensagens particulares de recém-falecidos aos familiares, como um ?correio do além?, compara Stoll.

Ao mediar os diálogos entre diferentes autores sobre o tema, a autora analisa que Chico Xavier recria sua história de vida em torno da idéia do sofrimento, o que figura em todas as suas obras. Junto com a renúncia, reforça o argumento da mediunidade como ?missão?. Ele extrai do modelo monástico católico os elementos fundamentais que delineiam sua vida pública (renúncia, obediência e voto de pobreza). Consolida um modelo de expressão da espiritualidade espírita que se torna paradigma do estilo brasileiro de ser espírita.

A pesquisadora observa também que na ética de Chico Xavier constam como temas fundamentais o sofrimento, renúncia e afastamento do mundo. Considera que no Brasil o espiritismo se consolida de modo diferente do que ocorre na França, porque se apropria da noção cristã de santidade, um dos valores fundamentais da cultura religiosa nacional.

Matriz espírita e novo espiritismo em Luiz Antônio Gasparetto

Luiz Gasparetto nasce de família espírita. Em conversa com Chico Xavier, reclama do tempo que os espíritos lhe tomam, das tintas caras que o espírito de Van Gogh quer utilizar, importadas da Bélgica, Holanda, e das altas somas que disso decorrem. Mas admite que, se deixar de trabalhar nesse campo por três ou quatro dias, sentirá sua mediunidade perder algo da sensibilidade.

De início, comunga com os ideais do espiritismo. Recebe as primeiras orientações de Chico Xavier e torna-se reconhecido como um dos melhores pintores mediúnicos. Ele redefine o curso de sua trajetória religiosa a partir dos anos 80s, após viagens ao exterior e contatos com a filosofia da Nova Era. Passa a criticar o movimento espírita, rompe com os modelos constituídos, passa a buscar novos roteiros e interlocutores.

Embora sem concretizar o resultado da insistente busca por uma oportunidade de entrevista pessoal com o médium, Stoll faz das palestras ministradas por Gasparetto contextos de sua observação participante. Ele já não se diz, nem é considerado espírita, pois se distancia do kardecismo para montar seu próprio ?quebra-cabeças?.

Ele pensa em criar o espiritismo da Nova Era, um projeto ?incorporado? como Calunga, seu guia espiritual, figura típica da umbanda. Luiz Gasparetto diz que os ?desencarnados? mudaram o modo de usá-lo para este trabalho, pois as pessoas precisam mais de autoconhecimento. Seus cursos e atividades destinam-se a grandes platéias e são pagos.

Mas a antropóloga analisa que embora a incorporação de idéias e práticas estranhas à doutrina de Allan Kardec o façam pensar-se e ser tido como um outsider (condição de marginalidade), a matriz espírita de sua formação se faz constantemente presente na prática e exposição de suas idéias. A nova ética, porém, expressa a afluência da sociedade de consumo e desafia o discurso das virtudes da santidade, definido como ideal pelo catolicismo e por outros sistemas religiosos que dele se apropriaram, a exemplo da corrente dominante do espiritismo no Brasil.

Para aprofundar o tema ou saber como a psicografia vem sendo valorizada nos tribunais, entre outros, escreva para orioneditora@terra.com.br.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, mestre em Antropologia Social pela UFPR, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná – zeliabonamigo@uol.com.br

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