Embora a busca pela felicidade seja um desejo universal, a realidade do ambiente de trabalho, especialmente no “chão de fábrica“, muitas vezes se choca com essa aspiração, expondo a saúde mental dos trabalhadores a riscos significativos. Diante desse cenário, a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1) se destaca como um avanço crucial, colocando a saúde mental no mesmo patamar das questões de segurança tradicionais.
De Sócrates (o filósofo e o jogador) ao rapper Mano Brown, passando pela poetisa Clarice Lispector e pelo filósofo e professor Clóvis de Barros Filho, o conceito de felicidade recebe várias definições e perspectivas. Independente do cenário ou tempo em que foi concebido, “ser feliz” é desejo de praticamente todos os seres humanos.
O problema é que a vida vem e nos atropela sem dó, distribuindo em nosso caminho traumas, questões familiares, boletos, jogadores pernas de pau e um trabalho estressante. Esse amontoado de “pedras” por vezes nos coloca à beira de precipícios, fazendo com que a saúde mental deixe de ser tratada como frescura ou aquele “papo da turma do RH”. No dia a dia, os trabalhadores lutam muitas vezes silenciosamente para manter a própria sanidade e continuar entregando os resultados que a “firma” espera.
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Uma boa notícia para os trabalhadores brasileiros foi a atualização da Norma Reguladora n°1 (NR-1) que entrou em vigor em 2025. Essa mudança exige que as empresas brasileiras, incluindo as indústrias, passem a avaliar e gerenciar os riscos psicossociais no trabalho. Isso inclui: identificar e analisar fatores que podem levar a doenças mentais, como o excesso de trabalho, demandas pouco claras, assédio moral e falta de autonomia.
Trocando em miúdos, a responsabilidade das empresas aumenta quando são identificados eventuais transtornos associados à saúde mental de seus colaboradores, caso medidas efetivas não sejam tomadas, como a criação de um plano de ação para mitigar os riscos e a fiscalização mais rigorosa em setores com alta incidência de doenças mentais.
De acordo com dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), em pesquisa divulgada no Jornal da USP, aproximadamente 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem com a síndrome de burnout, que desde 2022 é reconhecida como doença ocupacional pela Organização Mundial do Trabalho. Na indústria, a pressão por produtividade e as rotinas exaustivas podem ser gatilhos para essa condição.
Segundo a pesquisa de Saúde Suplementar na Indústria, conduzida entre abril e agosto de 2024 pelo Serviço Social da Indústria (SESI) e Observatório Nacional da Indústria, 41% das indústrias não possuem estratégias definidas para tratar da saúde mental dos trabalhadores, enquanto 45,5% adotam apenas ações de conscientização, que se revelam pouco efetivas.
O problema é complexo quando se estratificam as razões para o esgotamento dos colaboradores. Um dos maiores sindicatos populares de Curitiba é o dos metalúrgicos, que possui 20 mil associados. Segundo a entidade, alguns fatores são decisivos para aumentar a frustração dos trabalhadores, como cargas de trabalho excessivas, monotonia e repetibilidade do trabalho, além de baixas perspectivas de crescimento na carreira e interferência na sua relação familiar.
Sem preconceito
É comum a associação, apesar de preconceituosa, do trabalhador de chão de fábrica a um sujeito bruto, pouco ou nada preocupados com a própria saúde – imagina a saúde mental. Este cenário, no entanto, vem passando por mudanças significativas. Longe das obrigações que passaram a regras pela NR-1, é nas linhas de produção que a transformação – pelo menos na teoria – começa a ser sentida.
“O que antes poderíamos dizer que era um preconceito ou estigma, hoje é uma preocupação real e está havendo muita aceitação por parte deles. Se antes havia um tom de insignificância ao tema, hoje ele está ganhando cada vez mais um espaço na agenda de preocupação da saúde deles, principalmente por entenderem que muitas das condições do ambiente e da organização do trabalho, que tem se apresentado em estado de precarização, têm influído significativamente no seu bem-estar”, explicou o médico Zuher Handar, assessor técnico do Sindicato dos Metalúrgicos da Grande Curitiba (SMC) e ex-presidente da Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (ABRASTT).
O grande trabalho do sindicato é oferecer informações mais frequentes e constantes sobre o tema, procurando estimular que os trabalhadores possam identificar os fatores psicossociais que representam potenciais fontes de risco de estresse ocupacional.
“O grande desafio é conseguirmos que as empresas entendam que o bem-estar organizacional não deve e não pode ser somente a manutenção da saúde organizacional, que prioriza a capacidade de uma organização apenas de ser eficaz e produtiva, mas as empresas devem estimular o princípio e a prática de que a capacidade de uma organização é de justamente promover e manter o mais alto grau de bem-estar físico, psicológico e social dos trabalhadores em todas as ocupações. Isto certamente trará maior benefício para todos”, concluiu Zuher Handar.
Realidade ainda é dura

“Existem muitas pessoas com doenças mentais na linha de produção, mas elas têm medo de falar, do julgamento, de demissão”. O relato chocante é de uma funcionária da indústria automotiva da Grande Curitiba. Para preservar a sua identidade – ela aceitou falar sob anonimato – optamos por não detalhar qual empresa ela trabalha, o que inviabilizou a reportagem de procurar a empresa e saber quais projetos e programas ela possui (se possui) para tratar a saúde mental dos seus colaboradores.
“Eu não falei sobre isso muito tempo, mas tive crises graves de choro e precisei reportar ao meu superior. Quando aconteceu, eu ia pro ambulatório, às vezes me davam um remédio, às vezes aguardavam o choro passar e me mandavam de volta pra linha ou pra casa. E só”, lamentou. “Tive ansiedade, depressão, burnout e síndrome do pânico e só falei com a psicóloga da empresa uma vez. E nunca mais me procuraram”.
Segundo a trabalhadora, a empresa em questão não oferece um ambiente confortável para tratar o tema. “As empresas têm dificuldade de falar sobre isso. Faltam programas, palestras. Seria importante para evitar muitos problemas e realmente ajudar as pessoas”. A entrevistada divide a responsabilidade com os próprios colegas. “Você precisa explicar para as pessoas algo que elas não conseguem ver. E daí acham que você está de corpo mole, que só quer atestado. Tem que sorrir para não ser julgado na própria linha”.
Enquete!
Publicado por Tribuna do Paraná em Sexta-feira, 22 de agosto de 2025
Como as empresas podem ajudar?
Algumas intervenções de baixo custo podem gerar um retorno minimamente aceitável nos índices de felicidade dos trabalhadores, sabidamente convertidos no ROI (Retorno sobre o Investimento) das indústrias.
Denize Savi é diretora de Felicidade Corporativa da Chilli Beans. Ela acaba de lançar o livro “A Ciência da Felicidade no Trabalho”, que sugere 7 passos essenciais para ser feliz na vida e no trabalho. Apesar de importar toda a matéria-prima (óculos de sol) que transformou a empresa numa potência no ramo, a Chilli Beans possui cerca de 6 mil funcionários pelo país.
Apesar de o conceito trazido no livro soar como algo mais executivo, do que “para peão”, Denize explica que a chave para a melhor assimilação dos conceitos essencialmente importantes é a comunicação bem feita. “Esse é o segredo pra você conseguir realizar um trabalho de transformação. A maneira que a gente aborda o tema com a alta gestão obviamente não é a maneira que a gente aborda com o chão de fábrica. Temos de mestres e doutores, a semianalfabetos no nosso quadro. A gente precisa entender as aflições de cada um. Sentar, conversar, entender e agir”, disse à Tribuna.
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É tudo uma questão de processos, explica Denize. E não adianta enfiar goela abaixo panfletos frios ou dinâmicas forçadas. Escutar, de fato, não apenas ouvir, o que muitas vezes mal se consegue falar. “Está faltando escuta ativa. Entramos num processo automático no dia a dia operacional e esquecemos de olhar para as pessoas. As empresas precisam colocar nas suas agendas que ter esses momentos com os colaboradores é fundamental. Escuta ativa é o básico, mas tem muito a ser feito”, concluiu Denize.
Bons exemplos
O Brasil ficou com a 38ª colocação no Relatório Mundial da Felicidade divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em março deste ano. O primeiro colocado neste ranking, pelo 8º ano consecutivo, foi a Finlândia.

Com sede em Curitiba, a finlandesa Valmet, especializada em tecnologias de processo, automação e serviços para as indústrias de celulose, papel e energia, importou o conceito de felicidade corporativa para suas operações e garante que os resultados são animadores. A busca da empresa é por constantes melhorias na implementação de projetos voltados à saúde emocional, física, social e financeira de seus 1.100 colaboradores.
Em 2021, a empresa anunciou na América do Sul o programa “Valmet Viva a Vida”, uma plataforma digital integrada de suporte que oferece orientação psicológica, financeira e de serviço social, confidencial e gratuita, para atender às necessidades dos colaboradores e seus familiares. “Alinhado ao nosso valor ‘Pessoas’, o programa foi implementado como suporte adicional aos nossos colaboradores e seus familiares”, ressalta a diretora de Recursos Humanos, Meio Ambiente, Saúde e Segurança da Valmet na América do Sul, Flávia Vieira.
No ano de 2023, a Valmet expandiu o programa Viva a Vida, inicialmente focado em suporte psicológico, financeiro e social, incorporando o monitoramento de saúde, atividades físicas e hábitos alimentares, resultando no lançamento do Viva a Vida + Saúde. No mesmo ano, 48,75% dos colaboradores da Valmet acessaram a plataforma do Programa Viva Vida para suporte psicológico, financeiro e social, ao passo que 47,9% dos funcionários utilizaram a plataforma + Saúde para agendamento de consultas e recomendação de tratamentos com profissionais especializados, oferecidos gratuitamente pelo plano médico da companhia. A empresa ressalta a confidencialidade de todo o processo.
Os bons resultados colhidos até aqui culminaram na ampliação do programa, agora voltado diretamente ao conceito de felicidade. Este novo “braço” do programa de bem-estar, criado pelo departamento de Recursos Humanos da multinacional, visa promover boas práticas relacionadas à diversidade, à integração e ao equilíbrio físico e mental.
“Entendemos que essa responsabilidade é de todos os colaboradores para garantir um ambiente de trabalho saudável, treinar gestores para oferecer apoio e acolhimento, disponibilizar recursos para que os colaboradores possam desenvolver bem suas atividades e proporcionar um reconhecimento adequado às funções que desempenham”, detalha a diretora.

Risada de peão
Rir é um dos melhores remédios contra todos os males. Apesar de “meio besta”, essa análise popular foi elevada a missão de vida para um ex-peão de fábrica. Rafael Aragão é nascido em Araucária, e trabalhou por 17 anos em algumas das grandes indústrias da região de Curitiba. Com o dom de fazer graça desde cedo, usou do bom humor para conquistar um lugar confortável nas exaustivas linhas de produção, fazendo com que o tempo passasse mais “suave”. E foi imitando o jeito caricato de alguns chefes que ele rapidamente caiu nas graças dos colegas.
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Um vídeo sobre a vida de peão de fábrica explodiu de audiência e o transformou em “Rei dos Peão”. Seu perfil no Instagram tem 1,2 milhões de seguidores e em seus shows a presença dos trabalhadores é constante, já que ele inclusive oferece desconto para “peão”. “Peão não tem burnout, que agora tá na moda. Nós temos caganeira. E peão não sofre, pois nosso psicólogo é a porta do banheiro. Deu B.O. a gente escreve lá, desabafa escrevendo na porta do banheiro da firma”, disse Aragão ao podcast Ticaracacast.
O sucesso nas redes e nas fábricas (conciliou os dois ofícios por seis anos) chamou a atenção das CIPAS (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) das empresas. Hoje, Aragão é uma das maiores estrelas de treinamentos da SIPAT (Semana Interna de Prevenção a Acidentes do Trabalho). As maiores indústrias do país, inclusive as multinacionais, contratam Aragão para ser a válvula de escape dos peões, usando o humor para falar sobre a importância dos cuidados com a saúde mental.
Divirta-se com um dos vídeos do Rafael Aragão



