Votos de menos

Um Brasil diferente foi retratado pelas eleições presidenciais de domingo passado, com a virada do candidato tucano Geraldo Alckmin na reta de chegada e a obrigatoriedade do segundo turno no dia 29. Até o último momento, as pesquisas indicavam a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no primeiro turno, mas o que se viu foi a diferença até então consolidada despencando para um patamar inferior ao necessário para evitar a volta dos eleitores às seções no final do mês.

A análise da súbita mudança de intenções levou a maioria dos estudiosos da questão política a retirar do arquivo e dar novo lustro a uma expressão que se julgava em desuso: o voto útil. Foi a decisão tardia de votar em Geraldo Alckmin, fortemente motivada pela trama do dossiê dos Vedoin, que dinamitou a ponte sobre a qual Lula imaginava cruzar, sem sobressaltos, na direção do segundo mandato.

Muitos analistas passaram a ver no voto dado ao tucano uma clara manifestação de contrariedade e decepção com o ex-metalúrgico, especialmente de parte da classe média, que também não assimilou a forma depreciativa com que Lula descartou a participação nos debates com os demais contendores, no primeiro turno. Houve estranheza também em relação ao silêncio mantido pelo presidente quanto às denúncias de corrupção contra vários integrantes do Partido dos Trabalhadores, pilhados pela Polícia Federal no planejamento e execução da compra do dossiê por R$ 1,7 milhão em cédulas de real e dólar, apreendido em poder de Gedimar Passos num hotel paulistano, poucas horas antes do embarque para Cuiabá.

Para dar uma idéia precisa da situação, houve quem afirmasse que o escândalo do dossiê respingou tanta lama no presidente da República que os votos em Alckmin não significaram uma conquista pessoal propriamente dita, mas a desistência pensada da opção Lula. Ao digitar o número de Geraldo Alckmin, Heloísa Helena ou Cristovam Buarque, o eleitor deu uma demonstração inequívoca da frustração que passou a sentir em relação ao presidente.

O candidato do PDT, aliás, explorou com muito tirocínio a construtiva tese do segundo turno no debate promovido pela Globo, à qual Lula só avisou horas antes que não iria comparecer, deixando a cadeira vazia e afastando ainda mais os eleitores.

Lula chegou à frente de Alckmin nas regiões norte e nordeste, com uma folga acentuada, mas perdeu no centro-oeste, sudeste e sul. O dado mais perturbador na formulação de estratégias para o segundo turno reside na incerteza das conjecturas sobre o resultado do dia 29, não se afastando a hipótese do crescimento da rejeição do candidato à reeleição, a ponto de criar condições para a vitória do opositor.

Na tentativa de se reeleger, Lula teve de enfrentar alguns obstáculos com os quais não estava familiarizado, justamente o que mais abominava nos outros: a falta de ética, a corrupção e os desvios morais. Espinhos cravados em suas costas por companheiros de primeira hora, dirigentes do partido, ministros e fregueses das comilanças palacianas. Uma vizinhança incômoda, que pode levá-lo à matroca.

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