Unificação da segunda instância estadual

Após permear por longo tempo as discussões travadas pela comunidade jurídica direcionadas ao aprimoramento da prestação jurisdicional, a unificação da segunda instância no âmbito das unidades federadas configura hoje um tema desvinculado do campo meramente dialético para valer, na prática, como medida já implementada em dois Estados brasileiros – o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul – e, ao que se depreende do teor da emenda recentemente apresentada no Senado Federal, objetivando restabelecer no texto da Reforma do Judiciário a extinção dos Tribunais de Alçada, sobressai que essa tendência, até então resumida a iniciativas isoladas, passa a transmudar-se em providência concreta na pretendida reestruturação do Judiciário brasileiro.

É sabido que o Estado, ao monopolizar a jurisdição, proíbe a autotutela, ao passo que tal proibição, em contrapartida, cria para aquele uma obrigação, vale dizer: um dever de tutelar qualquer espécie de situação trazida a seu conhecimento de forma adequada a cada uma delas.

No entanto, o desaparelhamento judiciário para atender à solução dos conflitos conduz, como bem registra Ada Pellegrini Grinover (Novas tendências do direito processual, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1990, p. 177) à “…obstrução das vias de acesso à Justiça e ao distanciamento cada vez maior entre o Judiciário e seus usuários. O que não acarreta apenas o descrédito na magistratura e nos demais operadores do direito, mas tem como preocupante conseqüência a de incentivar a litigiosidade latente, que freqüentemente explode em conflitos sociais, ou de buscar vias alternativas violentas ou de qualquer modo inadequadas (desde a Justiça de mão própria, passando por intermediações arbitrárias e de prepotência, para chegar aos ‘justiceiros’)”.

E esta situação tende a agravar-se na exata medida em que, quanto mais cresce a comunidade, mais crescem os litígios entre seus membros, ficando o Estado, nessas condições, cada vez mais impotente – inoperante mesmo – para resolver todos os conflitos sociais submetidos à sua apreciação.

É bem verdade que esta incapacidade estatal de atender aos reclamos de uma sociedade em constante evolução não tangencia unicamente o Poder Judiciário, mas, também, os poderes Legislativo e Executivo, alcançando igualmente outros encargos sociais do Estado, como a educação, a saúde, a segurança, etc., possibilitando com isso que a iniciativa privada se torne a grande supridora de tais deficiências.

As instituições, enfim, não funcionam como de fato deveriam funcionar e, em conseqüência, vivenciam freqüentes abalos de credibilidade popular.

Assim diagnosticada uma verdadeira crise institucional a envolver especificamente essa atividade substitutiva que o Estado chamou para si, muito se tem comentado aqui e alhures acerca de alternativas que possam conferir maior eficácia à prestação jurisdicional, como antídoto de uma Justiça “…lenta, cara, complicada, burocratizada e inacessível até para os conflitos tradicionais…” (ob. e p. cit.) e, nesse aspecto em particular, não é sem razão que a idéia de “privatizar” o quanto possível a solução dos litígios em nome da segurança da paz social – quer pela via da conciliação, da mediação ou da arbitragem – vem angariando um número de adeptos cada vez maior.

Sem embargo, enquanto emanação do poder estatal, a administração da Justiça não pode simplesmente deslocar-se do eixo do Estado a tal ponto de beirar os lindes da delegação. Decisivamente, não.

A preservação de seu monopólio é, sobretudo, obrigação indeclinável do Poder Público a quem cumpre, por conta disso, colocar em prática iniciativas que, com vistas na realidade social, propiciem àquele condições de ministrar uma Justiça abrangente, rápida e eficaz.

Com efeito, e tal como adverte o professor José Eduardo Faria (O cinqüentenário da Declaração dos Direitos Humanos, artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 20/07/98, p. A-2), meio século depois de concebida a Declaração Universal dos Direitos Humanos – época em que o pleno emprego e a difusão de benefícios por meio do Estado estavam na ordem do dia da agenda política dos países desenvolvidos -, “…os valores subjacentes à transnacionalização dos mercados, como a livre circulação de capitais e a ênfase a ganhos incessantes de produtividade, se converteram em imperativos categóricos e transcenderam os limites da economia, contaminando todas as esferas de vida.”

No campo social, por exemplo, prossegue o ilustre catedrático da Universidade de São Paulo, “os processos de deslegalização e descontitucionalização, conjugados com as privatizações e a revogação dos monopólios estatais, vêm transformando obrigações públicas em negócio empresarial. Com a transferência de muitos serviços essenciais da esfera governamental para a iniciativa privada, os cidadãos passam a ser tratados como simples consumidores em mercados com baixa competição e, por conseqüência, com desequilíbrio de forças. Atividades como educação, saúde e previdência se tornam redutíveis ao conceito de mercadoria e o acesso a elas perde sentido moral, convertendo-se em objeto de contratos privados de compra e venda” (idem).

Mais adiante, e após examinar as implicações de todo esse processo no campo político, mais especificamente no que diz com os efeitos sobre a ordem jurídica instituída pelos Estados com base nos princípios da soberania e da territorialidade, indaga ele: “As instituições judiciais encarregadas de decidir conflitos têm condições de manter sua jurisdição intocada? Como ficam os direitos sociais, econômicos e políticos diante dos processos de deslegalização? Até que ponto esses processos não corroem os mecanismos constitutivos da cidadania, um dos pilares da própria idéia de ‘declaração de direitos’?…” (ibidem).

O momento atual, por conseguinte, é extremamente propício para uma ampla reflexão sobre o verdadeiro papel do Judiciário, e toda e qualquer iniciativa que venha em prol da agilização na resolução de litígios, buscando, em última análise, a pacificação do grupo social, obviamente será sempre bem vinda.

Nesse contexto que direciona a preocupação de todos os operadores do direito a orientar o ideário de uma justiça universal, próxima dos objetivos que a justificam no propósito maior da aludida pacificação social e da diminuição das desigualdades, é que se apresenta a proposta de unificação de diferentes órgãos jurisdicionais de segundo grau, hoje entregues à mesma e única destinação.

Ora, falar na extinção do Tribunal de Alçada não significa ignorar os excelentes serviços que este colegiado vem prestando ao Estado do Paraná ao longo do tempo, nem tampouco inferir que a sua atividade derivasse num rumo oposto aos elevados objetivos de uma eficiente distribuição de Justiça e, assim, alimentasse o discurso posto no preâmbulo destas considerações e que, indubitavelmente, acirra cada vez mais o debate atual de todos os envolvidos. Positivamente, não.

Instituído há quase trinta e dois anos, sua competência foi sendo gradativamente ampliada, equivalendo hoje, em relevância de atuação, ao próprio Tribunal de Justiça. Prova inconteste de uma experiência bem sucedida.

Se assim é, por que então mudar?

Com certeza não o seria pelo simples desejo de inovar e muito menos por ignorância de uma tradição vitoriosa em nossa prática judiciária.

Todavia, consoante se detecta nas justificativas que instruíram as respectivas propostas de emenda às Constituições dos Estados do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, inúmeras razões conduziram a esse desate, podendo-se destacar, dentre elas, a intenção de “diminuir os altos custos administrativos da Justiça, hoje multiplicados por três na segunda instância” (Parecer da Comissão instituída com essa finalidade pelo Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro (Processo n.º 7.134/97-GP), bem como a necessidade concreta de “otimizar os serviços prestados à comunidade e reduzir a multiplicidade de setores administrativos que cuidam do mesmo assunto nas duas estruturas autônomas hoje existentes.” (Justificativa da PEC 86 1997, dep. Vieira da Cunha, Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul).

Trata-se, pois, de assumir crescentemente a intransigente defesa de propostas e inovações que, em atenção à racionalidade e funcionalidade, convirjam, no processo de evolução social, à efetividade cada vez maior da cidadania que só se dará em sua plenitude com a pronta, célere e eficaz atuação do Poder Judiciário.

Ou seja, do compromisso de implementar reformas tendentes sempre a aprimorar o sistema de Justiça, a lhe dar ágil estrutura, de modo a assegurar uma administração que corresponda aos anseios do povo.

A compatibilidade desses objetivos com os sãos princípios de uma boa organização judiciária refoge, seguramente, a qualquer tipo de questionamento. Contudo, não há negar que o mérito maior de uma decisão política nesse sentido, tal como reconhecido em inúmeros conclaves da magistratura nacional, é o reflexo altamente positivo nos serviços de ordem jurisdicional, quer pela sintomática eliminação dos incidentes processuais suscitados no escopo de dirimir conflitos de competência entre as duas Cortes de Justiça – fato que só contribui para o retardamento da solução do processo, agravando ainda mais a tão alardeada morosidade da máquina judiciária, e que, no caso do Paraná, a Lei n.º 12.360/98 não deu uma solução satisfatória -, quer pela simplificação no endereçamento de recursos.

Com efeito, ainda que não fosse pela anunciada redução dos custos administrativos, presumida, obviamente, pela unificação da gestão, em um único órgão, do funcionamento da instância superior – argumento sólido que norteou a incorporação dos Tribunais nas unidades federativas indicadas -, nenhuma incerteza remanesce de que a existência de um único tribunal competente para toda a matéria, além da supressão das mencionadas divergências interna corporis, propiciará maior facilidade de acesso a seus usuários, poupando especialmente os litigantes que, no mais das vezes, encontram sérias dificuldades na identificação do colegiado competente para apreciar o recurso manejado.

Dispensa mesmo tal abordagem institucional referências mais pragmáticas que também nortearam a diretriz de comando das já experimentadas fusões nos outros Estados, como aquela da simplificação da carreira jurídica correspondente, tornando-a mais atrativa em momento histórico que coincide com freqüentes sobressaltos pela instabilidade da pauta política, dentre outras de ordem pessoal, a reforçarem o alentado reduto de resistência ao enfraquecimento do Poder Judiciário.

Sobressai, portanto, de toda a argumentação técnica e prática pró-unificação das Cortes, um relevante ganho institucional.

As vantagens advindas da fusão dos Tribunais, algumas ora registradas, repercutirão indiscutivelmente numa melhoria de acesso à Justiça, na medida em que simplificam uma complexa estrutura, tornando-a mais compreensível para as pessoas e, portanto, facilitando, pelos menos em parte, a sua utilização.

Tal circunstância, certamente, não passará despercebida pela opinião pública.

Em se concretizando, pois, a unificação dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais de Alçada, ainda remanescentes nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, o parlamento brasileiro estará dando um importante depoimento no grande álbum nacional da reforma do Poder Judiciário.

Cid Marcus Vasques é promotor de Justiça em Curitiba, presidente da Associação Paranaense do Ministério Público. Contatos: (41) 352-2919 / 9974-3355

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