Um novo e democrático tribunal do júri (II)

Durante o Governo Itamar Franco, o anteprojeto do procedimento do Júri foi convertido no Projeto de Lei que, na Câmara dos Deputados, tomou o número 4.900/95 e recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça, apresentado pelo Deputado Ibrahim Abi-Ackel. A Exposição de Motivos, assinada pelo Ministro Alexandre Martins, foi redigida nos seguintes termos:

 ?A proposta insere-se num elenco de medidas de alteração ao Código de Processo Penal, destinadas a proporcionar maior celeridade e eficácia à prestação jurisdicional penal. Cabe ressaltar que sua elaboração é fruto de estudos realizados por Comissão de juristas constituída por este Ministério, mediante a Portaria n.º 349, de 16 de setembro de 1993. É de se destacar, ainda, a colaboração da Confederação Nacional do Ministério Público, da Associação Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça, na forma de sugestões para o aprimoramento do texto básico.

?O Projeto pretende proporcionar uma profunda alteração no procedimento relativo ao Tribunal do Júri. Quanto às características das disposições alteradas, bem como das razões que as fundamentam, entendo por oportuno e esclarecedor transcrever alguns tópicos do relatório oferecido pela citada Comissão:

?O tribunal do júri, clássica instituição democrática, foi expressamente mantido pela Constituição de 1988, assegurando-se-lhe a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5.º, XXXVIII). A redação do texto deixa claro que tal competência poderá ser ampliada para outros tipos de infração penal. Ressalta de tal conclusão a necessidade de aprimorar-se a atuação do tribunal popular, modernizando e simplificando o procedimento, além de conferir-lhe maior eficácia.

?O Projeto caracteriza-se pelos seguintes aspectos:

*     reduz a influência que a motivação da pronúncia possa exercer sobre os jurados: a decisão deverá restringir-se à indicação da materialidade do fato delituoso e de indícios suficientes de autoria ou participação, remetendo o processo para o júri;

*     permite a realização do julgamento sem a presença do acusado que, em liberdade, poderá exercer a faculdade do não comparecimento como corolário lógico do direito ao silêncio, constitucionalmente assegurado. Esta providência irá eliminar uma das usinas da prescrição, além de estar em harmonia com o restante do sistema. Os arts. 413 e 414 do Código de Processo Penal tinham razão de ser até o advento da Lei n.º 5.349, de 3.11.67, que revogou a prisão preventiva obrigatória e da Lei n.º 5.941, de 22/11/73, que concedeu liberdade provisória ao pronunciado primário e de bons antecedentes. Antigamente a prisão provisória (preventiva ou de pronúncia) era regra; agora é exceção. Nenhuma dificuldade havia antes para intimar pessoalmente o réu pronunciado que estava geralmente preso, pois a partir do caso de tentativa de homicídio a prisão preventiva era compulsória;

*     suprime o libelo, na forma de antiga reivindicação já constante do anteprojeto José Frederico Marques (1070) e dos projetos de 1975 e 1983), fixando-se a oportunidade do requerimento de provas pela acusação e defesa a partir da intimação da pronúncia, em que, estabelecidos os limites da acusação, estão fixados na decisão de pronúncia;

*     institui o preparo do processo visando a deliberação judicial sobre requerimentos de prova, o saneamento de nulidades e o esclarecimento sobre fato relevante, implementando-se o princípio da concentração de atos com vistas à discussão e ao julgamento da causa, e efetivando-se o relatório do processo nessa oportunidade, e não em plenário do júri;

*     amplia o processo de democratização da justiça popular, com o alistamento de jurados, além do dirigido aos setores já indicados atualmente, também junto a novos e representativos endereços comunitários e centros de convivência, como associações de bairros e instituições de ensino, núcleos populares que se vêm desenvolvendo de forma autônoma, à luz das garantias constitucionais, refletindo as expressões da cidadania, um dos princípios fundamentais da República e base institucional do tribunal do júri;

*     legitima o assistente do Ministério Público a requerer o desaforamento, medida constitutiva de uma possibilidade a mais para a realização da justiça material;

*     disciplina a organização da pauta em seção autônoma, providência importante para descongestionar a agenda do tribunal, e fundamental para o estabelecimento de uma ordem na designação das datas de reuniões do júri;

*     regulariza mais adequadamente as etapas do sorteio e da convocação dos jurados, atendendo a antigas reivindicações dos que atuam no júri. Além da dispensa de fórmula obsoleta (como a exigência da presença de um menor de 18 anos para tirar os nomes sorteados da urna), o Projeto resguarda o interesse das partes em acompanhar o sorteio determinado a prévia intimação. Os jurados serão convocados pelo correio;

*     revaloriza a função do jurado, habilitando-o a obter, quando em igualdade de condições, determinados benefícios como a preferência nas licitações públicas, no provimento, mediante concurso, em cargo ou função pública e na promoção funcional;

*     concede maior eficácia e agilidade para a instrução em plenário do júri, instituindo claramente o critério do cross examination, com as perguntas feitas diretamente às testemunhas e ao próprio acusado, pelo juiz presidente, pelas partes e jurados, – tudo com a necessária atenção aos princípios da imediação e da verdade material.

*     proporciona maior liberdade ao jurado para a formação de seu convencimento, com a possibilidade de solicitar ao orador a indicação da ?a folha dos autos por ele lida ou citada, bem como esclarecimento sobre questão de fato? e de, a qualquer momento da discussão, examinar os autos, – em plena consonância com dois objetivos essenciais: a) ampliar os caminhos para a descoberta da verdade, superando dúvidas e incertezas que não podem ser confidenciadas ou discutidas em voz alta, em face da incomunicabilidade a que estão submetidos os juízes populares; b) reduzir as possibilidades da indução em erro, expediente afrontoso aos princípios éticos de que se podem valer os procuradores de má-fé;

*     adota a simplificação do questionário, modificando, extraordinariamente, a redação dos quesitos e a colheita dos votos para, destarte, libertar o juiz, as partes e os jurados de um tormento bíblico a que estão atualmente condenados, reduzindo-os, a três, essencialmente, quais sejam, a materialidade, a autoria e a condenação (ou absolvição): a) se o acusado for condenado (com a afirmação do terceiro quesito), o juiz indagará sobre a causa de qualificação ou de especial aumento de pena constantes da pronúncia; b) deixará de existir o questionamento obrigatório em torno de circunstância atenuante que, na prática e se reconhecida, leva o Juiz de Direito a ?sugerir? ao jurado a escolha de uma delas em face da relação do Código; e, c) caberá ao presidente do Tribunal do Júri, no momento da sentença, reconhecer ou não a circunstância agravante ou atenuante;

*     suprime o vetusto e inadequado protesto por novo júri. A sua eliminação é uma exigência dos tempos e da necessidade de aplicação da pena justa. No cotidiano forense, muitas penas para crimes graves contra a vida são fixadas aquém de 20 (vinte) anos de reclusão para impedir o protesto por novo júri. Essa estratégia processual, visando superar o inconveniente da revisão forçada do julgamento, geralmente muito trabalhoso, tem dois graves inconvenientes: a) constitui uma solução penal artificiosa, em oposição aos limites materiais da função jurisdicional; b) produz uma pena injusta para o caso concreto, gerando, não raro a insatisfação popular. Não há razão, nos dias presentes, para se manter o recurso do protesto por novo julgamento, que é herança do sistema criminal do Império, quando a imposição da pena de morte e de galés perpétuas poderiam justificar esse tipo de revisão obrigatória.

*     sem alterar os aspectos do procedimento que justifica a existência e o funcionamento do tribunal do povo, o Projeto procura cumprir os objetivos de modernização, simplificação e eficácia em torno dos quais gravitam os esforços e as esperanças da reforma processual penal.?

?Estas, Senhor Presidente, são as razões das sugestões de alteração do procedimento seguido pelo tribunal do júri, destinadas a compatibilizá-lo com as exigências de celeridade e eficácia, em proveito de uma melhor prestação da justiça.

?Dada a relevância da matéria e sua repercussão na prestação jurisdicional penal, há especial interesse deste Ministério em sua rápida aprovação. Permito-me, assim, sugerir a Vossa Excelência, no caso de sua aceitação, a utilização da faculdade concedida pelo parágrafo 1º do artigo 64 da Constituição Federal, com a remessa de mensagem ao Congresso Nacional, solicitando urgência na sua tramitação?(1).

2. Da acusação e da instrução preliminar

Antes das notas a respeito da pronúncia, é importante observar a radical mudança da instrução judicial que antecede o juízo de admissibilidade da acusação para submeter o réu ao Tribunal do Júri. Como é sabido, uma das usinas de prescrição nos procedimentos dos crimes dolosos contra a vida consiste na irrazoável demora da instrução judicial, que é a mesma do processo comum. Com o novo diploma, há sensível redução de prazos, em especial para a audiência concentrada da instrução, que colherá, se possível, as declarações do ofendido; as testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa; esclarecimentos dos peritos, acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas. O interrogatório passa a ser o último ato, ao contrário do sexagenário sistema, quando o acusado vai responder sobre o fato imputado mas sem o conhecimento da prova testemunhal que ainda será produzida perante o Juiz. Onde, nesse caso a garantia do contraditório e da ampla defesa?

Ao atender ao princípio da concentração, a audiência única institui o valoroso princípio da identidade física do juiz adotada no processo civil, mas que, paradoxalmente, não existe no processo penal. Isso acarreta o grave resultado prático da rotatividade, nociva de juízes e promotores, à medida em que o processo vai se fragmentando em audiências descontínuas e distantes no tempo.

Tanto o prazo de 10 (dez) dias para inquirição de testemunhas e realização de diligências requeridas pela partes, como o encerramento da audiência de instrução no mesmo dia, constituem marcas registradas dessa mudança de cultura forense, quando o retardamento da instrução decorre das mazelas da administração, ou seja: a) a deficiência de quadros funcionais e b) os juízes, promotores e serventuários tardinheiros. Ou por obra da chicana do defensor antiético. E quanto ao tempo de registro dos depoimentos, o Tribunal do Júri de Curitiba tem dado boas respostas com a gravação simultânea. Um exemplo relevante vem da prática da Justiça Federal: vários depoimentos são colhidos no mesmo dia, em pouco espaço de horas, em face desse método. Afinal, a colheita da prova oral precisa sair do tempo da carroça.

Nenhuma necessidade justifica o sistema atual das alegações escritas apresentadas após o rosário burocrático de termos, atos e intimações. Os julgados de improcedência da denúncia (ou queixa) e de absolvição sumária são raríssimos. A rotina judiciária é a pronúncia, quer pelo convencimento como pelo mito da imaginária ?dúvida em favor da sociedade?. Alegações orais em vinte minutos para cada parte, prorrogáveis por mais dez, são suficientes para o resumo da prova e do pedido. Afinal, a instrução e as razões devem ter os seus momentos altos perante os juízes naturais da causa. O debate ganha em dinamismo e verossimilhança, ao contrário do modelo atual que, geralmente, estimula a retórica e a releitura da prova testemunhal feita perante a autoridade policial e o juiz togado, que não irão decidir o caso.

O art. 412, estabelece que o procedimento ?será concluído no prazo máximo de 90 (noventa) dias?. Possível? Impossível? Depende, é evidente, das condições humanas e materiais dos juizados. Mas é elementar que a especialização das varas criminais e o empenho dos magistrados podem dar uma resposta satisfatória a essa expectativa. O juiz não é apenas o gestor da prova; ele também deve ser o fiador da razoável duração do processo e o empregador dos meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

3. A pronúncia, impronúncia e absolvição sumária

Atendendo às exigências da boa doutrina e à estável jurisprudência dos tribunais, a nova orientação quanto à pronúncia evita o excesso de linguagem do prolator, que assume papel típico do acusador quando analisa minuciosamente a prova para excluir as hipóteses de negativa de autoria (ou participação), exclusão de crime e isenção de pena. O § 1.º do art. 413 declara que ?a fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria?. Nada mais é preciso.

Nota:

(1)     Separata do Projeto de Lei n.º 4.900, de 1995. (Mensagem n.º 1.272/94). Publicação do Centro Gráfico do Senado Federal, Brasília (DF), 1995.

René Ariel Dotti é professor titular de Direito Penal na Universidade Federal do Paraná; relator do Anteprojeto original da reforma do júri e membro da Comissão Redatora desde 1992 até 2000. Co-redator dos anteprojetos que se converteram na Lei n.º 7.209/84 (nova Parte Geral do CP) e Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execução Penal). Detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados, por proposta do deputado Osmar Serraglio (2007). Advogado.

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