Ultratividade de norma constitucional: efetivação no cargo de titular de serventia extrajudicial com fundamento no art. 208 da CF/67

A situação dos titulares de serventias extrajudiciais que foram efetivados, vigente a nova Constituição, com fundamento no artigo 208 da Constituição Federal de 1967 é um daqueles casos delicados que exigem atenção redobrada do operador do direito.

O tema vem à tona em razão de o Conselho Nacional de Justiça considerar, em decisões recentes, que essas efetivações afrontam a Constituição, particularmente o disposto no art. 236, § 3.º, da Constituição Federal de 1988.

Inicialmente, diga-se que o questionamento das efetivações realizadas nas serventias deve observar os prazos prescricionais fixados na legislação pátria. Trata-se a prescrição de instituto indispensável à preservação da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais.

O Supremo Tribunal Federal tem destacado o tema, sustentando que o poder da Administração de rever seus próprios atos submete-se sim a prazo prescricional, para que restem protegidos os subprincípios da confiança e da segurança jurídicas.

Nem se pretenda afastar a aplicação do prazo prescricional sob a alegação de que se trata de ato que viola diretamente norma constitucional. É que o ato de efetivação do serventuário, com base no art. 208 da CF/67, pode não configurar ofensa a dispositivo constitucional. Por outro lado, incide a prescrição mesmo na hipótese de inconstitucionalidade, por força da segurança jurídica.

Portanto, deve ser reconhecida a prescrição do debate administrativo e judicial em torno do provimento como titular em serventia extrajudicial caso já tenha transcorrido considerável lapso temporal desde a edição do ato questionado.

Quanto à questão de fundo – a compatibilidade da efetivação com fundamento no art. 208 da CF/67 com a ordem constitucional vigente – cabem igualmente alguns apontamentos.

A Constituição Federal de 1967, mediante seu art. 208, assegurava ao substituto sua efetivação no cargo de titular de serventias extrajudiciais ou judiciais, quando ocorrida a vacância, desde que fossem preenchidos os seguintes requisitos: (i) investidura legal no cargo a que se atribui a substituição do titular da serventia e (ii) contar, até 31 de dezembro de 1983, com cinco anos de exercício na condição de substituto na mesma serventia. Caso essas exigências tenham sido satisfeitas, considera-se indiscutivelmente assegurada a efetivação no cargo de titular.

O exercício desse direito à efetivação depende apenas da vacância da titularidade, que pode ocorrer até mesmo sob a égide de nova ordem constitucional.

Isso porque a ocorrência da vacância em específica e determinada época não constituía requisito, mas sim mera condição temporal para ser implementada a efetivação no cargo de titular.

O advento da Constituição Federal de 1988, trazendo no art. 236 regra que determina a realização de concurso público para o ingresso nos serviços notariais e de registro, não altera essa afirmação.

Apesar da obrigatoriedade do concurso público constituir regra de validade imediata, devem-se respeitar os direitos adquiridos. Ainda, com a omissão da CF/88 quanto à disciplina da específica situação dos serviços notariais e de registro, restou consolidada a posição dos responsáveis e substitutos.

Sendo assim, é razoável que os titulares cuja efetivação fora conferida com fundamento em norma constitucional pretérita continuem à frente das serventias, como titulares, até sobrevir hipótese de vacância, quando, então, abrir-se-á concurso público e promover-se-ão novas delegações. Compatibilizam-se, dessa forma, os dois dispositivos constitucionais envolvidos.

Portanto, na hipótese em exame, não se configura afronta ao art. 236, § 3.º, da CF/88; trata-se apenas de ultratividade do art. 208 da CF/67 frente à manifestação do Constituinte de 1988 no sentido de preservar o direito adquirido e silenciar a respeito da situação específica dos substitutos de serventias.

Note-se que a aplicação da nova Constituição a algumas situações criadas pela ordem antiga pode causar perturbação social e ferir a estabilidade jurídica. Desse modo, justifica-se a manutenção da disciplina fixada pela Carta anterior em casos singulares.

Entra em cena a noção de confiança legítima, para preservar a posição jurídica na qual legitimamente confiou o cidadão, quando o Poder Constituinte não tenha decidido expressamente de outro modo.

Em um Estado Democrático de Direito, o regime jurídico não pode sacrificar aquele que confiou na estabilidade de determinada norma e agiu de boa-fé; sobretudo quando o ato questionado foi produzido pelo próprio Estado, regular e justificadamente, como ocorre no caso aventado.

Assim, ao serventuário que satisfez as exigências traçadas no art. 208 da CF/67 é assegurado o direito à efetivação no cargo de titular no serviço notarial e de registro, dependendo o exercício da prerrogativa apenas da vacância do cargo, independentemente de quando ocorra.

É que nessas hipóteses há base objetiva que desperta legítima confiança na estabilidade de sua situação. Afinal, a Carta anterior expressamente assegurou um direito adquirido exercitável mesmo sob a égide de nova Constituição.

A aplicação imediata do regime constitucional inaugurado em 1988, caso não resguarde os direitos adquiridos, configura uma mudança ilegítima, causando prejuízos evidentes, contrariando os próprios valores que permeiam o ordenamento jurídico.

Considerando, então, a situação daqueles que foram efetivados no cargo de titular de serventias extrajudiciais com fundamento no art. 208 da Constituição Federal de 1967, defende-se ser necessário sustentar tal efetivação mesmo sob o manto do sistema constitucional inaugurado com a Carta de 1988. Nada de assombroso há nisso, constituindo apenas hipótese legítima de ultratividade de norma constitucional.

Clèmerson Merlin Clève é doutor em Direito pela PUC-SP. Professor Titular das Faculdades de Direito da UFPR e da UniBrasil. Advogado Fundador do escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, em Curitiba. cleve@uol.com.br

Cláudia Honório é especialista em Direito Constitucional pela UniBrasil. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Procuradora do Município de Curitiba. Advogada no escritório Clèmerson Merlin Clève Advogados Associados, em Curitiba. claudia.honorio@hotmail.com

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