Tipicidade Penal = Tipicidade Formal ou Objetiva + Tipicidade Material ou Normativa + Tipicidade Subjetiva

A doutrina penal clássica sempre concebeu a tipicidade como categoria do crime (a primeira, aliás), porém, dando-lhe enfoque preponderantemente formal. A tipicidade penal, antes do advento da moderna teoria da imputação objetiva (1970, Roxin), possuía duas dimensões: objetiva (ou formal) e subjetiva. Vejamos:

(a) para a doutrina causalista clássica o fato típico requeria: 1. conduta voluntária (neutra: sem dolo ou culpa); 2. resultado naturalístico (nos crimes materiais); 3. nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado); 4. relação de tipicidade (adequação do fato à letra da lei). O tipo penal, como se vê, de acordo com a corrente causalista, conta com apenas uma dimensão: a objetiva (ou formal). Dolo ou culpa, nesse tempo, pertenciam à culpabilidade (eram as formas da culpabilidade).

(b) para a doutrina finalista de Welzel o fato típico requeria: 1. conduta dolosa ou culposa (dolo e culpa passam a fazer parte da conduta); 2. resultado naturalístico (nos crimes materiais); 3. nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado); 4. adequação do fato à letra da lei (relação de tipicidade). O tipo penal, a partir do finalismo, passa a contar com duas dimensões: a objetiva (ou formal) e a subjetiva (esta última integrada pelo dolo ou pela culpa).

A maior crítica que se pode formular contra essas duas concepções do fato típico consiste no seu (exagerado) formalismo. O juízo de tipicidade penal contentava-se com a mera subsunção do fato à letra da lei. Confundia-se tipicidade legal com tipicidade penal. Tanto o causalismo como o finalismo não conseguiu superar o positivismo jurídico formalista (de Binding e de Rocco). Ignoraram (quase que) por completo o bem jurídico protegido, assim como sua dimensão ofensiva. A questão da imputação do resultado à conduta foi cuidada pelo finalismo de forma muito vaga. Confundiam violação da norma primária imperativa com violação da norma primária valorativa. Aliás, abandonaram quase que inteiramente esse último aspecto da norma penal. Nem cuidaram da necessária ofensa ao bem jurídico nem tampouco da imputação objetiva desse resultado ao seu agente. Centralizaram suas atenções na causação. Pouca relevância deram para a imputação (ou atribuição) do fato ao seu agente (como obra dele).

Moderna teoria da imputação objetiva (Roxin) e tipicidade penal: a tipicidade penal, a partir da moderna teoria da imputação objetiva de Roxin (1970), foi enriquecida por uma nova exigência consistente na atribuição do fato ao seu agente (como obra dele). Dois, basicamente, são os pressupostos (ou requisitos) da imputação objetiva: 1) criação ou incremento de um risco proibido relevante (que exige um juízo de desaprovação da conduta); 2) que o resultado seja objetivamente imputável ao risco criado (e que esteja no âmbito de proteção da norma). O tipo penal, nos crimes dolosos, depois do advento da moderna teoria da imputação objetiva, passou a contar com três dimensões: 1.ª) objetiva (ou formal); 2.ª) normativa (imputação objetiva) e 3.ª) subjetiva (dolo).

Como conseqüência do que foi exposto, nota-se como foi corrigida a dimensão subjetiva da tipicidade. Para Welzel ela compreendia o dolo e a culpa. A partir da teoria funcionalista do delito de Roxin ficou claro que apenas o dolo e outros eventuais requisitos subjetivos do injusto é que dela fazem parte. A culpa se resolve integralmente com os critérios de imputação objetiva (que constitui a segunda dimensão da tipicidade: a normativa).

Teoria constitucionalista do delito e tipicidade penal: de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos (Zaffaroni etc.) a tipicidade penal tem que ser compreendida (necessariamente também) em sentido material. Ela é fruto de todas as contribuições orientadas a conferir ao tipo penal uma clara relevância selecionadora do que é penalmente importante.

Além de aceitar os pressupostos materiais da moderna teoria da imputação objetiva (de Roxin), ela proclama a imperiosa necessidade de também se considerar (dentro do âmbito da dimensão material da tipicidade) a ofensa ao bem jurídico (ou seja: o resultado jurídico). Mesmo porque, por força do princípio da ofensividade, não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico.

O tipo penal, portanto, nos crimes dolosos, a partir da teoria constitucionalista do delito, continua contando com três dimensões 1.ª) a objetiva ou formal; 2.ª) a normativa ou valorativa; 3.ª) a subjetiva], porém, a segunda delas (a normativa) passa a contemplar três não apenas dois – juízos valorativos: 1.º) juízo de desaprovação da conduta (criação ou incremento de um risco proibido relevante); 2.º) juízo de constatação da ofensa ao bem jurídico (ou seja: do resultado jurídico) e 3.º) juízo de imputação objetiva do resultado (ao risco criado).

Há muita polêmica sobre qual seria a correta localização do juízo de desaprovação da conduta, que nada mais significa que a constatação do ?desvalor da conduta?. Para Roxin ele faz parte da imputação objetiva. Para Frisch esse juízo é autônomo e não se confunde com a imputação objetiva do resultado. Veremos mais adiante essa polêmica.

Tipicidade penal, assim, nos crimes dolosos, depois da moderna teoria da imputação objetiva bem como da teoria constitucionalista do delito significa tipicidade formal ou objetiva + tipicidade material ou normativa (com três momentos valorativos distintos) + tipicidade subjetiva (verificação do dolo e outros eventuais requisitos subjetivos do injusto).

Vejamos, em sua globalidade, cada uma das exigências da tipicidade penal, na atualidade.

Exigência de um fato formalmente típico: o fato típico (em sentido material ou constitucional) é composto, desde logo e antes de tudo, por um fato, que compreende todos os requisitos objetivos que concorrem para a configuração de uma específica forma de ofensa ao bem jurídico. São eles: conduta, o resultado naturalístico (nos crimes materiais), o nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado naturalístico), assim como outros requisitos formais exigidos pelo tipo legal (requisitos temporais, espaciais, maneira de execução etc.).

A conduta faz parte do fato: a conduta, por seu turno, requer o estudo dos seus pressupostos (a gravidez é pressuposto do crime de aborto, v.g.), do seu objeto material (coisa ou ente sobre o qual recai fisicamente a conduta do agente) bem como dos seus sujeitos (ativo e passivo). Ela faz parte do fato (ou seja: integra o fato típico). Em nosso juízo, não deve a conduta ser estudada separadamente (isto é, ela não conta com autonomia dogmática dentro da teoria do delito).

Em suma, fato típico (ou fato formalmente típico) é o fato concreto (da vida real) que realiza (que preenche) todos os requisitos objetivos contidos na lei penal e individualizadores de uma determinada forma de ofensa ao bem jurídico.

Exigência de um fato materialmente típico: em segundo lugar o fato precisa ser materialmente típico. O conceito de fato materialmente típico é complexo. Exige três níveis de valoração, ou seja, juízo de desaprovação da conduta (riscos proibidos), juízo de constatação da ofensa desvaliosa ao bem jurídico e juízo de imputação objetiva do resultado (ao risco criado ou incrementado).

Materialmente típico, portanto, no sentido que estamos aqui utilizando, envolve tanto a questão da criação ou incremento de risco proibido (juízo de desaprovação da conduta) como da ofensa ao bem jurídico (juízo de ofensividade), além da imputação objetiva do resultado (ao risco ou incremento do risco).

Ofensa desvaliosa (= desvalor do resultado): o fato materialmente típico, como acabamos de ver, exige um fato ofensivo desvalioso ao bem jurídico protegido. E quando essa ofensa é desvaliosa? Para ser desvaliosa a ofensa precisa ser: (a) concreta ou real (perigo abstrato ou presunção de perigo não encontra espaço no Direito penal da ofensividade), (b) transcendental, ou seja, dirigida a bens jurídicos de terceiros (nunca o sacrifício de bens jurídicos próprios pode justificar a imposição de um castigo penal), (c) grave ou significativa (relevante) e (d) intolerável.

Resultado jurídico desvalioso e tipicidade material: somente quando reunidas todas essas características é que o resultado jurídico (a ofensa) está em condições de ser admitido como expressão do sentido material da tipicidade.

Exigência de um fato subjetivamente típico: nos crimes dolosos, além de o fato ser formal e materialmente típico, ainda se requer a dimensão subjetiva (ou seja, a constatação do dolo e eventuais requisitos subjetivos do injusto).

Sintetizando:

Tipicidade penal = tipicidade formal ou objetiva + tipicidade material ou normativa + tipicidade subjetiva: é a soma da tipicidade formal ou objetiva + tipicidade material ou normativa + tipicidade subjetiva que esgota, na atualidade, o conceito de tipicidade penal. Nisso reside a grande diferença entre a teoria constitucionalista do delito e as demais teorias até aqui desenvolvidas (causalista, neokantista, finalista e funcionalista).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais  – www.lfg.com.br)

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