Reformas penais (XV): Pena abaixo do mínimo legal

Durante muitos anos discutimos se as circunstâncias atenuantes (menoridade, confissão etc.) permitem (ou não) fixar a pena de prisão aquém do mínimo legal. Na verdade, já não existe nenhum impedimento legal ou constitucional para isso. Todo discurso deôntico conduz a essa conclusão. Logo, se refutação ainda existe, é puramente ideológica.

No Brasil, com efeito, por força do art. 68 do Código Penal, o juiz, no momento de estabelecer a pena de prisão, deve seguir o denominado sistema trifásico (ou de Nélson Hungria): primeiro define a pena-base (com fundamento nos dados elementares do art. 59: culpabilidade, antecedentes, motivação, conseqüências etc.), depois faz incidir as circunstâncias agravantes e atenuantes (CP, arts. 61-66) e, por último, leva em conta as causas de aumento ou de diminuição da pena.

Indaga-se: se o juiz (com base no art. 59 do CP) fixou a pena-base no mínimo legal, uma vez comprovada uma circunstância atenuante (menoridade, por exemplo), pode rebaixá-la para aquém desse patamar? Na doutrina a posição vencedora é no sentido da admissibilidade da tese. Na jurisprudência sobressai o entendimento contrário, consoante o que está proclamado na Súmula 231 do STJ: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Essa súmula, entretanto, é desarrazoada.

No tempo em que se admitia o sistema bifásico (com fulcro no CP de 1940) as circunstâncias agravantes e atenuantes eram analisadas juntamente com as judiciais (que são os dados elementares e principais da dosimetria da pena). Logo, nessa época, era impossível fixar a pena-base aquém do mínimo legal. Fundado nessa provecta e sacralizada jurisprudência é que o STJ editou a Súmula 231, que hoje conflita diametralmente com o direito vigente.

Lendo-se o art. 68 do CP verifica-se que ele manda aplicar o art. 59 somente na primeira fase, isto é, no momento de se concretizar a pena-base. Referido dispositivo legal não proíbe o juiz de exercer certo poder discricionário nas fases seguintes da aplicação da pena. De qualquer modo, tendo em vista que poder discricionário não significa poder arbitrário, não há dúvida que, sem prejuízo de estar vinculado a alguns limites (inclusive e sobretudo constitucionais), pode (diante das circunstâncias agravantes e atenuantes) extrapolar os marcos abstratos da pena mínima e máxima cominadas para o delito.

Não há na atualidade, repita-se, impedimento legal para isso. O art. 68 do CP, como vimos, não impõe nenhum obstáculo. Aliás, considerando-se o teor literal do art. 65 do CP (são circunstâncias que sempre atenuam a pena…), se uma atenuante (devidamente comprovada) não tiver incidência concreta, o que se faz é uma analogia contra o réu (in malam partem) (leia-se: usa-se contra o réu na segunda fase da aplicação da pena os mesmos critérios da primeira).

Raciocinar em sentido negativo (à incidência efetiva da atenuante) implica admitir, no mínimo, interpretação restritiva contra o infrator, o que não é concebível. Sem contar a evidente violação ao princípio da individualização da pena, assim como da proporcionalidade e da culpabilidade.

Reconhecendo tudo isso, o projeto de reforma do Código penal que está no Congresso Nacional, em seu art. 68-A diz: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, o juiz, observado o critério do art. 59, e havendo desproporcionalidade entre a pena mínima cominada e o fato concreto, poderá, fundamentadamente, reduzir a pena de um sexto até metade”.

No direito futuro, como se vê, a questão ficará cristalinamente delineada. Com a vantagem de o juiz ter um limite (de atenuação) previamente definido, o que espanta o fantasma da “pena zero” (o juiz poderia, depois de ter fixado a pena-base, chegar à pena zero). Impossível. O fantasma da “pena zero” é argumento ad terrorem (que só impressiona os incautos). O art. 65 do CP dispõe que as atenuantes sempre atenuarão a pena (não diz que a eliminarão). Atenuar não é eliminar.

Em síntese, propugnamos tanto (em nossos vários anos de luta pelo direito) por juízes criativos, que adotem interpretação conforme à Constituição, que sejam guardiães dos seus princípios, regras e valores, porém, na questão ora em debate, de tudo quanto necessitamos é de um juiz conservador, que seja la bouche de la loi e cumpra a legalidade (estrita) e nada mais!

Luiz Flávio Gomes

(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente do IELF – Instituto de Ensino Jurídico (www.ielf.com.br) e autor do curso de DP pela internet (
www.iusnet.com.br)

Voltar ao topo