Proposta da OAB aprovada na comissão legislativa da Câmara dos Deputados

Na edição de "Direito e Justiça" de 5.1.2004, noticiamos sobre o lançamento da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, pela OAB e a CNBB, e publicamos o anteprojeto de lei elaborado pelo jurista Fábio Konder Comparato, encaminhado a Comissão de Participação Legislativa da Câmara dos Deputados. A proposta de iniciativa popular substitui a Lei n.º 9709, de 18.11.1998, sobre as consultas populares e a realização de plebiscitos e referendos no Brasil, dando efetividade ao art.14 da CF/88. Recebida na íntegra pela relatora da Comissão, deputada Luiza Erundina, a proposta foi entregue pelo presidente nacional da OAB, Roberto Busato, Agora, a proposição dará início à tramitação na Câmara, transformado em Projeto de Lei da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados. A deputada Erundina destacou que ela constitui "passo legislativo importante no sentido de consolidar nossa democracia viabilizando a utilização efetiva de instrumentos de democracia direta e assegurando ao povo o exercício direto do Poder". A parlamentar sustenta ainda a convicção de que "a história da República Federativa do Brasil sofrerá impactante alteração com a aprovação da presente sugestão legislativa". A seguir, a íntegra do relatório e o voto da deputada Luiza Erundina sobre a proposta do Conselho Federal da OAB (Sugestão 84/2004):

RELATÓRIO: Tem por objeto a regulamentação do artigo 14 da Constituição Federal, em matéria de plebiscito, referendo e iniciativa popular. Justifica o Autor: "Só se consideram, hoje, legítimos os sistemas constitucionais, em que se estabelece a necessária distinção funcional entre soberania e governo. Aquela deve pertencer, de modo efetivo e não meramente simbólico, ao povo; enquanto o governo há de ser exercido pelos representantes eleitos do soberano, que determina as grandes diretrizes de ação política dos governantes e os controla permanentemente. A Constituição Federal de 1988 consagrou esse princípio fundamental de legitimidade política, ao declarar solenemente que "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente" (art. 1.º, parágrafo único). No capítulo IV do seu Título II, a Constituição da República indicou quatro grandes formas de manifestação da soberania popular: o sufrágio eleitoral, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa. Objeto do presente projeto de lei é regulamentar os três últimos instrumentos da soberania popular, expressos no art. 14 do texto constitucional." A sugestão pretende regulamentar a utilização de plebiscito, referendo e iniciativa popular legislativa como instrumentos do exercício da soberania popular.

VOTO DA RELATORA: Em análise do ponto de vista formal, a sugestão apresentada preenche todas as condições estabelecidas no Regimento Interno da Câmara dos Deputados, encontrando-se formalmente em ordem. No que tange ao conteúdo material da sugestão legislativa, a proposta é inovadora e digna dos mais elevados encômios. Sem sombra de dúvidas, a República Federativa do Brasil funda-se em princípios fundamentais, dentro os quais aquele previsto no art 1.º, parágrafo único da Constituição Federal, que consagra "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Em outras palavras, preceitua a Constituição Federal que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, com o poder exercido pelo povo, de forma direta ou indireta. A consolidação da idéia de Estado Democrático de Direito que temos hoje adveio da preconização de princípios basilares como igualdade, liberdade, segurança, resistência à opressão e direito de propriedade, os chamados direitos naturais. Nesse sentido o ilustre jurista Dalmo de Abreu Dallari refere-se aos ideais do Estado Democrático de Direito, mais precisamente na sua origem, ainda no século XVIII, ensinando que "Nenhuma limitação pode ser imposta ao indivíduo, a não ser por meio da lei, que é a expressão da vontade geral. E todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente, ou por seus representantes, para a formação dessa vontade geral. Assim, pois, a base da organização do Estado deve ser a preservação dessa possibilidade de participação popular no governo, a fim de que sejam garantidos os direitos naturais." Completa, ainda, o insigne professor, que na transformação do Estado resultante das Revoluções dos séculos XIX e XX, sempre houve especial preocupação com a "participação do povo na organização do Estado, na formação e na atuação do governo, por se considerar implícito que o povo, expressando livremente sua vontade soberana, saberá resguardar a liberdade e igualdade."

Não podem ser esquecidos esses preceitos ao se tratar do atual modelo de Estado Democrático a que buscamos manter incessantemente. Sempre deve estar à frente a supremacia do povo, pois para que se alcance e mantenha o ideal do Estado Democrático, a vontade do povo deve prevalecer sobre a vontade de um grupo ou um indivíduo, respeitadas as opiniões contrárias. "Todo homem é um ser racional, dotado de inteligência e de vontade, sendo todos igualmente capazes de proferir julgamentos sobre os fatos que presenciam e que afetam seus interesses. E como esses julgamentos sempre irão variar, em função dos pontos de vista de quem os profira, verifica-se que é inerente à convivência humana o direito de divergir, e que a todos os indivíduos deve ser assegurado esse direito. É este, aliás, o fundamento do predomínio da vontade da maioria, que tem por pressuposto que a vontade de todos os indivíduos é substancialmente igual em valor."

Notório filósofo do século XVIII, Emmanuel Kant também sustenta que a vontade do legislador não é o arbítrio do poder estatal, mas a vontade geral do povo unido na sociedade civil. Todavia, desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, os instrumentos que consagram a democracia participativa vêm sendo timidamente utilizados, e se encontram regulamentados por legislação infraconstitucional bastante superficial. A presente sugestão legislativa rompe com a superficialidade existente e estabelece um marco na história da democracia participativa em nosso país, fortalecendo os instrumentos constitucionais do plebiscito, do referendo popular e da iniciativa popular legislativa. De fato, somente há que se cogitar da existência de um Estado Democrático de Direito se for possível que o cidadão também disponha de mecanismos de participação direta e efetiva no exercício do poder. Não se deve assegurar ao cidadão que apenas seja representado pelos eleitos em sufrágio universal, como fruto da democracia representativa. A República Federativa do Brasil consagra também o exercício direto do poder pelo povo e a Constituição Federal, em seu artigo 14, estabelece que a soberania popular será exercida também pelo plebiscito, pelo referendo e pela iniciativa popular legislativa.

A sugestão legislativa apresentada pelo Conselho Federal da OAB, a partir de estudo elaborado pelo insigne jurista Prof. Dr. Fábio Konder Comparato, vem assegurar a eficácia a esses instrumentos. A partir da sugestão legislativa, o plebiscito passa a ser fundamental instrumento de democracia direta, sendo obrigatório em três situações: (i) em caso de mudança de qualificação dos bens públicos de uso comum do povo e dos de uso especial e (ii) em caso de alienação, pela União Federal, de jazidas, em lavra ou não, (….) de energia hidráulica e (iii) a criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Estados ou Municípios, bem como a criação de Territórios Federais, a sua transformação em Estado ou reintegração ao Estado de origem. E mais. Possibilita ao povo, através de iniciativa popu<%2>lar e à minoria parlamentar, mediante um terço dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, a iniciativa de plebiscito em duas situações, a saber : (i) a execução de serviços públicos e programas de ação governamental, nas matérias de ordem econômica e financeira, bem como de ordem social, reguladas nos Títulos VII e VIII da Constituição Federal e (ii) a concessão administrativa de serviços públicos, em qualquer de suas modalidades, bem como a alienação do controle de empresas estatais.

Além disso, a sugestão legislativa também consagra efetivo exercício do referendo popular, impondo a sua obrigatoriedade para a aprovação ou rejeição de qualquer lei que verse sobre matéria eleitoral, desde que não seja oriunda de iniciativa popular. E ainda disciplina que o referendo popular poderá ser utilizado para aprovar ou rejeitar, de forma soberana, total ou parcialmente, emendas constitucionais, leis, acordos, convenções, pactos, tratados, protocolos internacionais e até atos normativos baixados pelo Poder Executivo, bastando, para tanto, que seja realizado por iniciativa popular ou por iniciativa de um terço dos membros de cada Casa do Congresso Nacional.

Por derradeiro, a sugestão legislativa confere maior eficácia à iniciativa popular legislativa, pois estabelece condições menos rigorosas para a identificação dos cidadãos signatários e assegura prioridade em sua tramitação parlamentar. Ademais, a sugestão legislativa ainda prevê que eventual alteração ou revogação de lei de iniciativa popular, por lei não originária de iniciativa do povo, deverá obrigatoriamente ser submetida a referendo popular, fortalecendo, assim, a democracia direta. Temos convicção em afirmar que a história da República Federativa do Brasil sofrerá impactante alteração com a aprovação da presente sugestão legislativa. Daremos um passo legislativo importante no sentido de consolidar a nossa democracia, viabilizando a utilização efetiva de instrumentos de democracia direta, assegurando ao povo o exercício direto do poder. Por todo o exposto, para que seja fortalecido o exercício da democracia direta pelo povo em nosso país, voto pelo acolhimento do Anteprojeto de Lei de Regulamentação do Artigo 14 da Constituição Federal, em matéria de referendo, plebiscito e iniciativa popular, passando a matéria a constituir-se em Projeto de Lei de autoria desta Comissão de Legislação Participativa" Deputada LUIZA ERUNDINA DE SOUSA – Relatora.

Edésio Passos é advogado.

E-mail: edesiopassos@terra.com.br

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