Polêmica sobre a remissão na Lei Nº 8.069/90

A remissão prevista no artigo 126 da Lei n.º 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente é instrumento de uso cotidiano na Justiça da Infância e da Juventude, mas a incompreensão dos limites de sua aplicação, especialmente a vedação do artigo 127, 2.ª parte, da mesma lei (relativa às medidas privativas de liberdade), tem gerado desacordo e incentivado alternativas práticas que enfraquecem as garantias constitucionais da Ampla Defesa e do Contraditório.

Sem importar análise aprofundada do mérito (razão pela qual não se presta como antecedente), a remissão é uma forma alternativa de exercício da pretensão socioeducativa conferida ao Estado a partir da prática do ato infracional. Exclui ou extingue o processo judicial já em curso e pode ser simples (reconhecendo a desnecessidade de intervenção do Poder Público) ou cumulada com medidas socioeducativas ou de proteção (ECA, artigos 101 e 112). Antes da instalação do processo, a remissão é ato do Ministério Público em conjunto com o jovem implicado e está sujeito à homologação judicial (ECA, artigo 126, caput). Durante o processo, a iniciativa da remissão cabe essencialmente à autoridade judiciária, sem prejuízo da possibilidade de provocação pelo Ministério Público (ECA, parágrafos únicos dos artigos 126 e 186).

Trata-se de instituto assemelhado à transação penal estabelecida no artigo 76 da Lei n.º 9.099/95 (FLÁVIO AMÉRICO FRASSETO. Proposta de Lei de Diretrizes Sócio-Educativas: Comentários. Associação de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e da Juventude. Internet: www.abmp.org.br, 06 set. 2002.), tendo como característica em comum a exigência de prova bastante da materialidade e indícios de autoria de infração penal, diferenciando-se dela, no entanto, com relação aos pressupostos objetivos e subjetivos. Se por um lado, a transação se perfaz apenas em infrações determinadas na própria lei e desde que os antecedentes do agente permitam, por outro, a remissão pode ser aplicada ao adolescente a princípio sem excluir nenhum ato infracional e mesmo que o jovem conte com outros registros (incluindo remissão anterior em qualquer tempo). Isto porque, embora atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato em concreto, ao contexto social, à personalidade do adolescente e à sua maior ou menor participação no ato infracional, a remissão está essencialmente vinculada à necessidade de intervenção do Poder Público para educação do jovem. Deverá, de conseguinte, ser concedida sempre que a provocação do Juízo mediante representação ou a completa instrução e o julgamento do mérito se mostrarem impertinentes ou desnecessários.

Em que pese a possibilidade de remissão simples mesmo em caso de materialidade comprovada e autoria confessa de ato infracional de qualquer espécie, é um erro confundir a remissão prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente como ?perdão? (aproximando-a da figura corresponde no artigo 120 do Código Penal), justamente porque não diz respeito ao mérito, afastando a cognição aprofundada do tema. Por decorrência lógica, só se perdoa uma falta que se conclui efetivamente praticada, conclusão esta de que não se cogita. Aquela ?remissão? do Código Penal, ela sim é o verdadeiro ?perdão judicial? e se refere à eventualidade de o juiz, embora perfeita a constituição do crime, deixar de aplicar a pena, verificadas determinadas circunstâncias previstas na própria lei. É uma causa de extinção de punibilidade, direito subjetivo do réu e que se opera independentemente de sua aceitação (Código Penal, artigo 107, inciso IX. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: Parte Geral. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 562.)

O equívoco tão presente no dia-a-dia do Judiciário brasileiro é explicado de forma curiosa por JOÃO BATISTA DA COSTA SARAIVA, que aponta sua origem na tradução imprópria da versão em castelhano ?remisión? para a versão em português adotada pelo Estatuto, a partir do princípio n.º 11 das Regras de Beijing, documento internacional que deu molde à lei especial. O erro, segundo o mesmo autor, é mais facilmente percebido quando comparadas as duas versões acima indicadas com a versão em língua inglesa, que contém expressão bastante diversa: ?Como se sabe, os documentos oficiais da ONU são editados em inglês, espanhol, francês, russo e chinês. No documento em inglês, o instituto chama-se diversion, que poderia ser traduzido para o português como ?encaminhamento diverso do original?. Cumpre observar que a palavra inglesa remision, ato de remitting (que significa perdoar, ou deixar de infligir uma pena) não foi utilizada na versão em inglês.? (SARAIVA, João Batista da Costa. Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 56.)

Ter em vista a natureza transacional e eventualmente sancionatória da remissão no Estatuto é importante porque, sem análise aprofundada do mérito, não há instrução completa em Juízo e como decorrência natural desse caráter sumário há um sensível relaxamento dos princípios constitucionais da Ampla Defesa e do Contraditório, conforme previstos no artigo 5.º, inciso LV, da Constituição da República. É justamente por força dessa restrição ao princípios constitucionais que regem todo processo judicial que existe a restrição às medidas privativas de liberdade (ECA, artigo 127, 2.ª parte): poderão ser aplicadas, exclusiva ou cumulativamente, a advertência; a obrigação de reparar o dano; a prestação de serviços à comunidade; e a liberdade assistida. Não é possível a aplicação de inserção em regime de semiliberdade; e a internação em estabelecimento educacional.

O tema se torna crítico a partir do momento em que o adolescente beneficiado descumpre reiteradamente a medida que lhe foi aplicada em remissão e o órgão judiciário se vê tentado a converter aquela medida em meio aberto em semiliberdade ou internação (a chamada ?regressão?, como é denominada no dia-a-dia).

Autores como JOÃO BATISTA DA COSTA SARAIVA (Op. cit., p. 59 e seguintes.) defendem que o descumprimento reiterado da medida imposta na remissão permite sim ao juízo determinar a conversão em medida privativa de liberdade, porque, em suma, a avaliação do comportamento do adolescente instaura um novo procedimento, assegurada ao adolescente a possibilidade de justificar sua contumácia, não decorrendo a medida mais grave diretamente da remissão (com amparo dos artigos 88 e 128 do Estatuto). No entanto, como adverte o mesmo autor, grande parte da doutrina se inclina pela negativa e a jurisprudência, embora seja simpática à regressão, há tempo costuma temperar a matéria com exigências preliminares (i.e. presença de advogado por ocasião da remissão – I Encontro de Juízes e Promotores da Infância e da Juventude do Grande ABC, entre 26 e 27 de agosto de 1993), o que entende não ser o foco do problema.

Procurando esquivar-se da polêmica, há juízos que têm aplicado o texto seco do artigo 186, § 2.º, somente instruindo o feito quando houver previsão de que será aplicada medida privativa de liberdade. Nesse sentido: ?As Varas Especiais da Infância e Juventude da Capital [São Paulo] adotam a praxe de aplicar aos adolescentes acusados de envolvimento em ato infracional, nos casos em que somente temos a realização de audiência de apresentação e há confissão, medidas socioeducativas em meio aberto, sem a cumulação com a remissão, o que entendemos que contraria o art. 186 do Estatuto da Criança e do Adolescente.? (CASTRO, João César Barbieri Bedran de; Interpretação constitucional do artigo 186, §§ 1.º e 2.º do ECA. Boletim IBCCRIM, ano 13, n.º 158, janeiro, 2006, p. 5.)

Embora essa prática afaste a dúvida sobre a possibilidade de privação de liberdade decorrente do descumprimento reiterado das medidas em meio aberto (porque terá havido sentença de mérito), o certo é que a ?sumarização? da colheita de provas para julgamento aprofundado da pretensão socioeducativa compromete com nulidade absoluta a validade do procedimento e da sentença então proferida, por ofensa aos princípios constitucionais sobreditos.

Assim, por imperativo constitucional, toda sentença que julgar o mérito sobre ato infracional deve ser precedida do devido processo legal em sua inteireza, com atendimento aos princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, ouvindo-se as testemunhas em Juízo e assegurando-se a defesa técnica. Essa também é a opinião de pesquisador do gabarito de WILSON DONIZETI LIBERATI: ?Em face do preceito constitucional (art. 227, § 3.º, IV) e estatutário (art. 111, III), o adolescente a quem se atribui a autoria de ato infracional terá garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição da infração, igualdade na relação processual e defesa técnica por advogado, ?mesmo que o ato praticado não seja grave?. Isso quer dizer que, não concedida a remissão, o juiz deverá verificar se o adolescente está representado por advogado; em caso negativo, nomeará defensor, nem que seja só para aquele ato processual, independentemente da gravidade do ato praticado.? (LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 193.)

Concluindo, permanece a polêmica sobre a conversão de medidas aplicadas em remissão; talvez sempre permaneça até mudança legislativa. No entanto, a busca de alternativas que evitem a discussão judicial tem levado a procedimentos nulos por ofensa a garantias constitucionais, exigindo das partes e do Estado-Juiz atenção para que a ?sumarização? cotidiana dos processos de apuração de ato infracional não negue aos educandos algumas das conquistas mais importantes que traduzem o Estatuto da Criança e do Adolescente.

André Del Grossi Assumpção é promotor de Justiça em Iretama-PR.

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