Sonho vira pesadelo em Guaratuba

O sonho de ter uma casa na praia virou uma imensa dor de cabeça para a dona-de-casa Izabel Tracz de Paula Louro e a esteticista Kátia Doerr Stella, de Curitiba. Há 17 anos, elas compraram dois terrenos no loteamento Balneário Barra do Saí, em Guaratuba. A negociação foi feita por intermédio de um escritório na capital (Comissária Itapóa Ltda.), representante da imobiliária Barra do Saí Imóveis Ltda. Quando quitaram os lotes, foram visitar o local, já com o planejamento para a construção das casas. Mas tiveram uma desagradável surpresa. Izabel e Kátia descobriram que a área era um imenso mangue.

Por um terreno de 360 metros quadrados, Kátia pagou 270 mil cruzados e Izabel desembolsou 283 mil cruzados. Segundo a Prefeitura de Guaratuba, no boleto de pagamento do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), os imóveis estariam avaliados hoje em R$ 1.160,77. Kátia e Izabel caíram em um golpe conhecido em toda a cidade, semelhante ao que atingiu os compradores dos loteamentos Nações e Jardim Village.

Kátia viu a oferta em um anúncio de jornal. Izabel ganhou o lote de presente do marido, que comprou o terreno depois de um vendedor ir até a Telepar, onde trabalhava na época. As duas possuem o Registro Geral de Imóveis e as escrituras de compra e venda documentados em cartório na cidade de Guaratuba, datadas de dezembro de 1991 e outubro de 1990, respectivamente. Além dos valores do imóvel e parcelas de pagamento, no contrato especifica-se que o Balneário Barra do Saí tem loteamento ?aprovado pela Prefeitura Municipal de Guaratuba, em data de 04/06/1968, protocolado sob n.º 795, devidamente registrado em seu memorial de loteamento nos termos do Decreto Lei n.º 58 de 10/12/1937 e regulamentado pelo n.º 3079 de 15/09/1938 no Cartório de Registro de Imóveis da Primeira Circunscrição de São José dos Pinhais (…) e ainda, registrado no Cartório do 2.º Ofício, da mesma Comarca (…)?.

A cláusula nona do contrato informa que ?os trabalhos de urbanização do loteamento do presente contrato serão executados pela firma L?art Incorporadora e Planejamento Ltda., de conformidade com compromisso particular firmado com a Barra do Saí Imóveis Ltda?. Segundo as escrituras, Kátia possui o lote n.º 11, da quadra 92, e Izabel é dona do lote n.º 05 da quadra 82, da planta Balneário Barra do Saí.

As duas contam que procuraram a imobiliária diversas vezes, por meio de Octávio Agnelo Ribeiro Ramos, diretor da empresa. No começo, eram comunicadas que os serviços de abertura de ruas e infra-estrutura aconteceriam em dois ou três anos. Esse posicionamento foi divulgado novamente em 2003, quando voltaram a procurar a empresa, em Guaratuba. A Barra do Saí Imóveis informou que a responsabilidade dessa etapa é da L?art Incorporação e Planejamento. ?Hoje falariam a mesma coisa para a gente. As primeiras quadras são habitáveis, mas o resto é tudo mangue. Seriam 15 quadras previstas na planta até o meu lote, sem qualquer tipo de acesso?, afirma Kátia.

Izabel explica que as quatro primeiras quadras estão situadas até um córrego que corta o terreno. ?Falaram para a gente que ia se construir uma ponte sobre o córrego, tudo bonitinho. Colocaram toras de madeira e não dá para passar?, comenta.

A reportagem de O Estado foi até o local, fácil de encontrar com as indicações dos moradores da região, que conhecem a existência do golpe. Parte da área realmente possui construções, mas atrás delas existe um imenso mangue, onde foi possível achar até caranguejo.

De acordo com Kátia e Izabel, quando procuraram a imobiliária, Ramos não quis levá-las até o loteamento. ?Quando dissemos quem somos e onde era, não quis nos levar lá. Nunca chegamos onde realmente é o nosso lote. Não sabemos onde é exatamente porque não há acesso?, revela Kátia.

Terrenos não apresentam valor venal

A pedido de Izabel Tracz de Paula Louro e Kátia Doerr Stella, a empresa E.C. Imóveis, também de Guaratuba, fez recentemente um parecer técnico dos dois lotes, assinado por Elen Simara Christmann. O resultado é o mesmo para os dois casos: o imóvel está sem valor venal no mercado por ser inacessível. Kátia e Izabel procuraram a Prefeitura de Guaratuba e registraram reclamações, mas foram informadas que a administração municipal nada poderia fazer.

Depois que descobriram que a área onde iam construir suas casas é um mangue, as duas pararam de pagar o IPTU, cobrança que todos esses anos vinha normalmente para elas nos endereços de suas residências em Curitiba. Isso rendeu a Kátia e Izabel títulos de dívida ativa com a Prefeitura de Guaratuba. ?Mas nos últimos dois anos (2004 e 2005) nos isentaram do IPTU?, afirma Izabel.

As proprietárias entraram com um processo na Coordenadoria Estadual de Defesa e Proteção do Consumidor (Procon). Kátia foi em duas audiências marcadas pelo órgão, sendo a última delas no dia 1.º de março de 2004, mas nenhum representante da Barra do Saí Imóveis apareceu. ?Deixei de ir no enterro da minha mãe, em Antonina, para ir na audiência. O senhor Octávio não recebeu as correspondências do Procon e todas voltaram lacradas. O Procon deu o caso como encerrado?, afirma.

As duas também entraram com um processo no Juizado Especial (antigo Pequenas Causas), mas perderam a audiência marcada. Mesmo assim, não teriam resultado porque as correspondências de intimação também foram devolvidas e ninguém da imobiliária apareceu. ?Para reativar o caso, precisaríamos gastar mais R$ 130. Mas por que gastar esse dinheiro se ninguém vai aparecer??, questiona Kátia.

As duas ainda lutam por uma solução, mesmo depois de anos sem resposta. Querem outro terreno com acessos, infra-estrutura, registro e escritura. ?Se for resolvido assim, colocamos todos os impostos em dia. Não adianta mais prometer para a gente que vão abrir as ruas. Estamos cansadas de não ter nenhuma resposta. Enfrentamos a ironia de muitas pessoas, saindo dos lugares do mesmo jeito que entramos?, explica Izabel. (JC)

Desafio: anular registro de loteamentos

O golpe da venda de terrenos em mangues é conhecido pelos moradores de Guaratuba. Quem cai normalmente é gente de fora da cidade. Na década de 1970, houve uma onda de aprovações de loteamentos desse tipo na Prefeitura de Guaratuba, o que gerou escrituras de compra e venda e registro de imóveis totalmente legais. Os lotes foram vendidos durante quase 20 anos.

Segundo o promotor público de Guaratuba, Lucílio Held, os terrenos foram comprados por pessoas de boa-fé, que depois tiveram uma desagradável surpresa, e por indivíduos com a intenção de fraudar financiamentos bancários ou compensação de créditos tributários. ?O cadastro de imóveis não condiz com a realidade. A Prefeitura fez vista grossa na época. Agora, 30 anos depois, o grande desafio é anular os registros desses loteamentos. Ficou uma bomba-relógio para resolver e há obstáculos. É necessário reunir todos os proprietários para anular o ato jurídico de compra e venda?, afirma.

Held revela que existe quase uma dezena desses loteamentos em Guaratuba, um golpe que deve ter afetado milhares de pessoas. O Balneário Barra do Saí diverge um pouco dos outros casos existentes na região. Parte dele é habitável. Nos outros loteamentos, tudo está em mangues ou até mesmo embaixo d?água. Somente no Barra do Saí, estavam previstos 3.191 lotes na planta. O promotor não sabe se todos foram vendidos. ?É evidente que o loteamento tem irregularidades e há dificuldades processuais para anular isso. O caminho mais adequado não seria responsabilizar o município, pois quem acaba pagando essa conta é a população. É responsabilizar os agentes públicos que estavam na época à frente da Prefeitura e da Secretaria de Urbanismo?, comenta.

Conforme o promotor, os crimes cometidos pelos envolvidos são falsidade ideológica e estelionato. ?Infelizmente, a maioria dos crimes já prescreveu. Mas tem a responsabilidade cível, na qual se pode conseguir indenizações?, explica Held. Como é grande a quantidade de pessoas prejudicadas, talvez sejam necessários vários processos, cada um relativo a um grupo de 10 proprietários, para facilitar o resultado na Justiça.

O promotor garante que esses imóveis não são mais vendidos na cidade. Ele acredita que se houvesse a presença de uma promotoria na cidade na época, o que aconteceu somente em 1986, talvez não haveria tantas pessoas enganadas porque tinham o sonho de ter uma casa na praia. (JC)

Plano diretor da cidade pode solucionar casos

O atual secretário municipal de Urbanismo de Guaratuba, Lúcio Moura, ressalta que o município é obrigado a considerar como o loteamento o Balneário Barra do Saí e outros que se encaixam na mesma situação, justamente pelo registro legal feito na década de 1970.

De acordo com ele, a administração municipal poderá ajudar na resolução do caso após a aprovação do plano diretor da cidade, já enviado pela Secretaria de Urbanismo para a Câmara dos Vereadores, onde está sendo analisado. ?O plano diretor estipula quais são as áreas de preservação, onde é mangue. A partir daí o município poderá tomar uma atitude. Hoje não há legislação para anular o registro. Se o plano diretor for aprovado, isso poderá ser feito e os direitos das pessoas que compraram serão vistos?, declara. Ele acredita que o resultado da aprovação ou não do Plano Diretor deve sair em novembro. (JC)

Esposa de acusado nega participação

A reportagem de O Estado foi até o endereço fornecido por Octávio Agnelo Ribeiro Ramos em seu cartão de visitas, no qual diz ser diretor da empresa Barra do Saí Imóveis Ltda. – Loteamento de Praia, em Guaratuba. O cartão foi dado há dois anos à Kátia Doerr Stella e Izabel Tracz de Paula Louro em um encontro que tiveram com ele sobre os lotes comprados, após contatos telefônicos. O endereço é da residência dele, mas não havia ninguém no local. Vizinhos disseram que Ramos se encontrava com a família em Curitiba porque estava muito doente. Com conhecidos de Ramos na região, foi pego o telefone de contato dele na capital. Nesse número, a reportagem foi comunicada que ele havia descido novamente para Guaratuba, mas conseguiu falar com a esposa dele, Adair Adoraci Alves dos Santos.

Ela declarou que Ramos não poderia prestar esclarecimentos por motivos de saúde. Adair explicou que o loteamento foi aberto por seu marido, mas que ele entregou para a Barra do Saí Imóveis Ltda. o direito de vender os lotes. ?Se eles (imobiliária) fizeram sujeira, se mostraram uma coisa e venderam outra, o Octavio não tem nada a ver com isso. Eles levavam para o Octavio somente assinar, depois o negócio era fechado?, afirmou Adair. O nome de Ramos e sua assinatura aparecem na escritura de compra e venda do negócio.

Ela negou que a empresa seja de Ramos ou que ele seja ligado a Barra do Saí Imóveis. A escritura de compra e venda entre a imobiliária e Odair José Stella (esposo de Kátia Doerr Stella) cita: ?Saibam quantos esta pública escritura de compra e venda virem, que ao primeiro dia de outubro de 1990, nesta cidade e comarca de Guaratuba, Estado do Paraná, em cartório compareceram de um lado como outorgante Barra do Saí Imóveis Ltda. (…), neste ato representada pelos sócios Octavio Agnelo Ribeiro Ramos (…) e Doris Schmidt Casagrande (…) e, do outro lado como outorgado comprador o senhor Odair José Stella (…)?.

Adair disse que é uma mentira os contatos telefônicos feitos por Kátia e Izabel para Ramos, pois o telefone na residência dele está instalado há apenas 4 meses. Desse período, ele passou 3 meses em Curitiba se recuperando de uma doença.

A reportagem conseguiu o endereço da L?art Incorporação e Planejamento Ltda., em Curitiba, descrito no Registro de Imóveis de Guaratuba, obtido no site da Prefeitura. Foi até a residência indicada no local, que hoje abriga uma casa de atendimento à crianças. Ninguém sabia informar se essa empresa havia funcionado lá. Os telefones que constam na lista telefônica com esse endereço não eram da L?art. Não existem dados sobre a empresa nas escrituras de compra e venda dos imóveis, nas quais também é citada. (JC)

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