Paraná, 150 anos (5)

A proclamação da República, somente implantada na verdade depois de promulgada a Constituição de 1891, liberou uma torrente de ódio e divergências políticas até então represados por parte de grupos rivais. O historiador David Carneiro disse com propriedade que a República não se fizera com sangue, mas muito sangue havia de jorrar para que ela se consolidasse…

“Somente os primeiros dias de República foram de verdadeira calma, apesar de explosões reacionárias, logo sufocadas. Essas pequenas explosões porém, preparavam ambiente à reação poliforme e formidável que, como nimbos cinzentos anunciadores de tempestade, vinham se acumulando nos horizontes do Brasil”, escreve também no livro O Paraná e a Revolução Federalista, reeditado em 1982.

No Rio Grande do Sul os ânimos sobremaneira se exaltaram, levando o historiador a dizer com certa candura que “luziam armas por toda parte”. O nome de políticos e caudilhos bem conhecidos como Júlio de Castilhos, Gaspar da Silveira Martins, Pinheiro Machado e Assis Brasil estão mais uma vez na boca de todos os gaúchos. Rompem os gasparistas e os federalistas e a oposição se divide entre presidencialistas e parlamentaristas. Diz Carneiro que “a insegurança atingira o auge e o governo para manter-se invocava a legalidade, não podendo reprimir nem mesmo os crimes comuns”.

É nesse cenário confuso mas propício à luta fratricida que emerge a figura do aventureiro uruguaio Gumercindo Saraiva, general aclamado por seus próprios soldados, também eles campeadores da imensidão dos pampas que percorrem sem fadiga em busca de qualquer entrevero, uma china, um trago de aguardente, o churrasco e o mate amargo.

Foi assim que Gumercindo Saraiva acabou invadindo o Paraná no final de 1893, à frente de uma coluna de revolucionários federalistas que se dirigia a São Paulo e Rio de Janeiro a fim de depor o marechal Floriano, que assumira a presidência da República com a renúncia de Deodoro.

A notícia logo chegou ao marechal que, incontinenti, convocou um dos melhores oficiais do exército republicano, o coronel-engenheiro Antônio Ernesto Gomes Carneiro, mineiro do Cerro, onde nasceu a 18 de novembro de 1847. Veterano da Guerra do Paraguai e servindo no Rio, justamente no dia que o ordenança da presidência entregou-lhe a convocação, no Largo da Carioca, completava 47 anos de idade. O presidente pediu-lhe que fosse ao Paraná com a determinação de não deixar passar o invasor!

Foram exatamente esses dois destemidos guerreiros, entre muitos outros bravos, as figuras predominantes do sangrento Cerco da Lapa, sem dúvida o episódio mais importante desses 150 anos de história do Estado.

Tendo ingressado no Paraná por Rio Negro, as colunas comandadas pelo caudilho Gumercindo Saraiva e pelos generais Laurentino Pinto Filho e Piragibe, batiam-se pela causa da nova república proclamada no Desterro alguns meses antes. A primeira resistência forte deu-se na cidade de Tijucas do Sul, mas a força gaúcha a rompeu prosseguindo o avanço na direção da Lapa. Aí estava desde 26 de novembro, Gomes Carneiro à frente de mil e trinta e seis homens que integravam forças de linha e batalhões patriotas chefiados por oficiais da Guarda Nacional, como Joaquim Lacerda, José Amintas da Costa Barros, João Antonio Ramalho e João Pacheco dos Santos Lima, entre outros.

O cerco efetivo começou no dia 17 de janeiro de 1894, tendo o inimigo atacado pelo Engenho do Mate, pela ferrovia e nas proximidades do cemitério. Joaquim Lacerda e Dulcídio Pereira, coronel do Regimento de Segurança do Paraná (atual Polícia Militar), destacaram-se em combate. A legendária resistiu no primeiro dia e nos seguintes e, até o final do mês, com inaudito esforço continuou rechaçando o fogo inimigo, que praticamente chegava à borda das trincheiras.

O pior estava para acontecer, segundo David Carneiro: “A ronda da fome começa. As casas tinham quase todas elas os seus poços de onde lhes vinha o precioso líquido universal. Mas o temor das granadas e das caçadas, fazia que os menos corajosos se abstivessem das operações indispensáveis e longas para a colheita da água. De uma bica próxima ao depósito de munições, se começou a tirar a água para a soldadesca e mesmo para as famílias”. A verdade última do historiador é que “a Lapa era um baluarte isolado, defendendo a ordem e a lei dentro de um campo de anarquia”.

O marechal Floriano prometera mandar reforços, bem como o governador paulista Bernardino de Campos, mas a força demorava a chegar. Veio fevereiro e os federalistas recrudesceram a dureza dos ataques, com maior quantidade de armas pesadas e homens em combate. Com a perda do cemitério para os sitiantes, os mortos da tropa comandada por Gomes Carneiro eram sepultados sob o assoalho da igreja, em vala comum.

Quando se via só, além do gosto que tinha pela leitura do Dom Quixote, de Cervantes, embora muito provavelmente esse deleite só viesse a ocorrer em momentos de calma, o que não era o caso dos primeiros dias de fevereiro, Gomes Carneiro tomava longas notas em seu diário de campo. Aquele seria um documento precioso, “porque sobretudo através dele ter-se-ia a elucidação de causas e o julgamento de pessoas e fatos”. O historiador diligente, todavia, lamenta a sorte do canhenho: “Havia de ser pouco depois roubado, e provavelmente destruído, por alguém interessado em jogar nas trevas algumas palavras elucidadoras que queimariam como o ferro em brasa de um julgamento final eterno”.

Por volta das seis horas da manhã do dia 7 de fevereiro, os federalistas lançam um ataque geral sobre os focos de defesa da Lapa. O coronel Carneiro, duas horas depois, está percorrendo a trincheira da rua Boa Vista, quando a fuzilaria inimiga quase à queima-roupa irrompe do interior de uma casa próxima. O comandante ordena a retirada dos soldados para a farmácia Westphalen, quando o tenente Henrique José dos Santos é alvejado no peito. Carneiro corre para socorrê-lo e é também atingido por uma bala de Comblain, que lhe vara estômago e fígado. Seu auxiliar, tenente-coronel Emílio Blum arremete na sua direção e o coronel “tira a mão do lado direito do capote, e mostra-a, ensangüentada, para fazer crer que nela tivesse sido ferido”, relata David Carneiro.

O chefe é levado para a residência de Pedro Fortunato, a cujo local deveria ser imediatamente chamado o dr. João Cândido, às voltas com uma infinidade de feridos no hospital de campanha. Gomes Carneiro estava gravemente ferido e pelo rombo da bala, o médico percebeu o vazamento de tecido hepático. Após 15 horas de intenso combate, às vezes cara a cara, ambos os lados haviam sofrido baixas sensíveis. Transmitiram ao coronel a notícia de que a vitória tinha sido esplêndida, mas o experimentado militar retrucou que era uma vitória de Pirro. “Outra vitória dessas e estaremos perdidos”, teria afirmado também com um leve sorriso.

Aos poucos ia-se esvaindo a reserva de vida do chefe da heróica resistência que a Lapa oferecia às forças revoltosas do Rio Grande do Sul. Outros valentes também já haviam tombado, dentre eles os tenentes Henrique José dos Santos e José Amintas da Costa Barros e o coronel Dulcídio Pereira, do Regimento de Segurança do Paraná. No dia 9, pelas quatro da tarde, João Cândido segurava o pulso de Gomes Carneiro e percebia que as batidas eram cada vez mais tênues. Auxiliares diretos do comando da praça entravam e saíam rapidamente do quarto, e a eles o coronel só ditava uma ordem, “resistência a todo transe”.

David Carneiro desenha a cena final: “Eram seis e meia da tarde; pouco mais talvez. A fuzilaria não cessava lá fora, e os canhões troavam soturnamente, respondendo ao bombardeio dos federalistas. Gomes Carneiro respirou fundo. Todos olharam ansiosos. Deixou pender a cabeça, fixando o olhar vidrado num ponto longínquo que só ele via”… Estava morto o grande soldado. Na manhã seguinte, depois de seu sepultamento na sacristia da igreja matriz, a Lapa (o resto do Paraná já havia aderido) começava a se entregar a Gumercindo Saraiva, Piragibe e Laurentino. Vitoriosos, seguiriam depois para o centro do País, onde Floriano os esmagaria.

O glorioso destino de Gomes Carneiro assim se escreve: “Ele estava morto, mas além do Paraná, que se sacrificara com ele, estava a República salva”.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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