Para não dissecar textos, nem flores de plástico

O crítico estadunidense Harold Bloom, em Cabala e crítica, escreveu: ?Um pensador empírico, diante de um texto, busca um significado. Alguma coisa dentro dele diz: ?Se este é um texto completo e independente, então ele tem um significado?. Entristece-me dizer que esta afirmação de aparente bom senso não é verdadeira. Textos não têm significados, a não ser na relação que estabelecem com outros textos, de maneira que existe algo de estranhamente dialético no significado literário. Um único texto contém apenas uma parte do significado; em si mesmo ele não é mais do que a sinédoque de um conjunto bem maior que inclui outros textos.?

Na defesa que fazemos da leitura da literatura muito temos batalhado em prol da idéia de que um leitor crítico da literatura se constrói lendo. Qualquer opinião, qualquer sentido que tentemos extrair de um texto, passa pelo trabalho de estabelecer relações entre tudo o que lemos. Se permanecermos com o mesmo repertório anos a fio, como poderemos entender a produção literária contemporânea, como poderemos estabelecer com o presente vínculos de compreensão? Relendo a citação acima, podemos extrair dela vários argumentos para pensar a formação de leitores e de professores na atualidade.

Lembro da tentativa quase sempre frustrada dos alunos aplicados que, ao analisar um texto literário qualquer, propunham como objetivo de seu trabalho dissecar o sentido do livro, do poema, da narrativa. Para tanto, imaginavam que a exploração dos vários elementos (como personagens, tempo, espaço, idéias, sociedade, ideologia e muitos outros) lhes daria o poder de submeter o sentido do texto a uma interpretação definitiva. Ao final do trabalho exegético, uma pergunta do colega, uma observação minha, o acréscimo de um livro não consultado, punham por terra a pretensão do dissecamento. Aliás, se há uma palavra que dá ânsias e azia é essa: dissecar. Ponho-me, por vezes, a imaginar o pobre texto estendido numa reles maca, submetido a bisturis e esgares de vingança dos neófitos leitores, ansiosos em descobrir as entranhas dele, para as expor e, provavelmente, depois jogar na lixeira mais próxima. Justifica-se que, para esses necrófilos estudantes, a literatura seja objeto para a leitura de velhos, gagás e caretas.

Na visão dinâmica de Bloom, nenhum texto se fecha na estreiteza de sua individualidade, nenhum sentido pode ser estabelecido pela leitura singular. Outros textos são sempre chamados, aparentados, costurados pelos fios da significação. Quanto menor o repertório, mais lacunas, mais vazios, mais incompreensão. É lógico que ele está tratando de obras que superam a superfície dos sentidos, as que aprofundam, nem bobas nem repetitivas. Se apenas um texto, ou poucos, se bastasse, haveria a negação da própria linguagem, por natureza dialógica, intertextual, em busca da interlocução.

O crítico Harold Bloom continua: ?Uma biografia verdadeiramente literária é, em grande parte, uma história das defensivas desleituras de um poeta realizadas por outro poeta.(…) insisto na des-leitura ou desapropriação como sendo a modalidade geral ou normal da história poética.?. Essa corrente de leituras e desleituras dá a dimensão mais próxima do que seja compreender um texto literário, que se enraíza nos que o antecederam e origina novos pela força propulsora e dialética, que faz com que a cultura literária seja um continuum indestrutível.

Bethânia Mariani, em Leitura e condição do leitor, afirma que o sujeito é constituído pelo inconsciente e pela ideologia. Não há sujeito-leitor e leitura fora da linguagem. Estar na linguagem é estar significando e sendo significado. Ler não é descobrir um sentido primeiro ou original. Ao contrário, é saber, criticamente, que o sentido pode ser outro. Segundo ela, é a linguagem que organiza nossa realidade, nosso imaginário e nossa memória: ?Nascemos em um mundo previamente organizado pela linguagem: passamos a vida repetindo e/ou resistindo e/ou rompendo, para transformar sentidos que já circulam no tecido sociocultural?. A subjetividade se constrói com memórias pessoais, com memórias coletivas realizadas nas trocas na comunidade, com as experiências de sua territorialidade, com as ocorrências históricas partilhadas e as memórias institucionais, como quer Le Goff.

Eliana Yunes, por sua vez, afirma que ?a permanência dos textos está ligada à historicidade do leitor?. Essa união entre a herança de sentidos intrinsecamente contida na linguagem e as alterações subordinadas à história do leitor é que constitui a dialética do movimento dos sentidos na leitura de textos, em especial da literatura. Mais do que isso, Yunes reafirma esse caráter dialético quando define que ?Ler é a experiência de se pensar, pensando o mundo?.

A resistência à massificação, à subjetivação, longe do individualismo que consagra a competição, próximo da sensibilidade crítica permanente, que jamais dá por terminado o sujeito, constitui no entender de Felix Guattari a essência da singularização. Nesse nosso tempo de anestesia social, de apagamentos da memória, da vontade, do alento e da visão de um futuro melhor, convém ler a literatura e acordar para uma reflexão sobre o mundo e realidade. Cedo a palavra para o artista, para Eduardo Galeano, que, em ?De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso?, alerta:

VISTA DO CREPÚSCULO, NO FINAL DO SÉCULO

Está envenenada a terra que nos enterra ou desterra.

Já não há ar, só desar.

Já não há chuva, só chuva ácida.

Já não há parques. só parkings.

Já não há sociedades, só sociedades anônimas.

Empresas em lugar de nações.

Consumidores em lugar de cidadãos.

Aglomerações em lugar de cidades.

Não há pessoas, só públicos.

Não há realidades, só publicidades.

Não há visões, só televisões.

Para elogiar uma flor, diz-se: ?parece de plástico?.

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