Os vinte anos da Constituição Federal

Clèmerson Merlin Clève, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Paraná e da UniBrasil, fala sobre os vinte anos da Constituição Federal de 1988. Constitucionalista que se debruça sobre o tema há alguns anos, Clève, expôs algumas reflexões sobre a denominada “Constituição Cidadã”. Confira a seguir

Fazendo um balanço dos 20 anos da Constituição Federal de 1988, quais os principais ganhos proporcionados por este período para o país e os brasileiros?
Os ganhos foram muitos. Temos hoje um país muito diferente. Gostaria, porém, de chamar atenção para os avanços marcantes no campo dos direitos fundamentais, na esfera institucional e na seara da experiência democrática. O brasileiro, atualmente, tem consciência de seus direitos e os reivindica. Basta ver que até mesmo os movimentos sociais contestatórios agem sob o signo da constituição, não contra ela. Os direitos fundamentais, a certeza de que o papel do Estado encontra-se vinculado, sob pena de deslegitimação do poder político, à sua satisfação substancia importante conquista. Tal fato tem exigido uma releitura do direito, das categorias jurídicas, mas, também, um outro modo de praticar as profissões jurídicas. E tem-se, aqui, não apenas a reivindicação da satisfação dos direitos sociais, em especial dos prestacionais (saúde, moradia, previdência, educação), tendo nascido mesmo uma clareza em relação aos problemas decorrentes da exclusão e quanto à necessidade urgente de enfrentá-la (um país de excluídos não pode se apresentar como Estado Democrático de Direito), mas também a emergência da luta pelo reconhecimento (velha categoria renascida) das situações singulares a exigir tratamentos distintos (a diferença) para render homenagem ao princípio da igualdade. Isso tudo somado ao relativo consenso a propósito dos direitos fundamentais vistos agora como direitos de seres humanos concretos demandantes de tratamentos (por parte do Estado -eficácia vertical -, ou de outros particulares – eficácia horizontal) efetivos que levem em conta essa situação. Daí a experiência jurídica neste campo sofrer renovação constante com as reivindicações concretas de trabalhadores, mulheres, negros, povos indígenas, tudo considerado delineando a idéia de uma sociedade mutante, plural e, ao mesmo tempo, única no sentimento de pertencimento a uma comunidade republicana construída a partir defundamentos, presidida por determinados princípios e voltada a um fim determinado (construir uma sociedade livre, justa e solidária). Mesmo os direitos fundamentais clássicos demandam renovada leitura. Se é certo que os direitos sociais apresentam-se ligados à idéia de justiça distributiva, muitos dos direitos fundamentais aproximam o universo jurídico do campo da moral. É nesse ponto que vemos a complexidade do direito à vida, por exemplo, num tempo em que a ciência pode abrir veredas destruidoras de velhas certezas ou num momento em que a emergência do pluralismo (da sociedade plural) aponta para um papel distinto do Estado naquilo que diz respeito às escolhas morais. Não é de esquecer, por outro lado, que uma sociedade livre e aberta, não pode prescindir da idéia de emancipação, que implica responsabilidade também. Se a Constituição proclama um país formado por cidadãos, ela aponta para uma sociedade constituída por brasileiros emancipados, não dependentes. Isso exige um renovado papel do Estado no desempenho de suas atividades, mas igualmente do cidadão que deve perceber que numa república há direitos, mas também deveres derivados dessa condição.

Na esfera institucional, embora possam ser levantadas severas críticasà atuação dos órgãos constitucionais, ninguém discordará que estamos avançando. Temos instituições que vão se solidificando, de modo que a prática in,stitucional brasileira é nitidamente superior àquela de muitos países que, como nós, superaram recentemente regimes autoritários. Mal ou bem elegemos nossos governantes, num quadro de eleições livres e periódicas. Claro, há o problema da qualidade da representação. Mas aqui, com o tempo, com o fortalecimento da esfera pública e com a ampliação das oportunidades educacionais, certamente a qualidade melhorará. Gostaria neste ponto de chamar a atenção para o papel do Judiciário, particularmente no exercício da jurisdição constitucional. Poderia falar algo a propósito do Ministério Público, instituição que vem prestando relevantes serviços à nação. Ou sobre determinados problemas de governabilidade que estão a exigir maior atenção, ou o excessivo uso das medidas provisórias que macula o funcionamento satisfatório de nossas instituições políticas. Todavia, quero chamar a atenção para o modo como vem atuando o Poder Judiciário. Aqui, tivemos uma renovação impressionante. Temos um novo Judiciário, do ponto de vista institucional. Um Judiciário comprometido com a Constituição. Claro, não se pode esquecer o problema que alguns vão chamando de explosão de litigiosidade, mas que não passa, na verdade, do fenômeno da descoberta, pelo cidadão, de que seus direitos podem ser reclamados junto ao Judiciário. Aqui, vemos a incapacidade de o Estado atender de modo satisfatório ao grande número de feitos aforados todos os anos. Mas soluções vão sendo buscadas: – os juizados especiais, o processo eletrônico, o estímulo às soluções alternativas (mediação, arbitragem) e mesmo aquelas contempladas na reforma do Judiciário como a súmula vinculante e a repercussão geral no recurso extraordinário ou anteriores a ela como o efeito vinculante nas ações de controle abstrato de constitucionalidade, inclusive a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Dignos de nota, ainda, os esforços que vão sendo despendidos pelo Conselho Nacional de Justiça, errando aqui ou acolá, mas acertando mais do que errando. A sobrecarga do Judiciário é um problema que ainda nos desafiará por algum tempo. Mas vamos oferecendo respostas a ele. É importante, todavia, realçar o fato de que o Judiciário vem se debruçando sobre a Constituição. Vem exercendo, particularmente, o Supremo Tribunal Federal, o papel de guardião da Constituição. Se é certo que algumas decisões podem ser questionadas, talvez por denunciarem um certo ativismo, ninguém pode negar o importantíssimo serviço prestado pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos anos. Trata-se de um Supremo Tribunal Federal corajoso, determinado, consciente do seu papel histórico, que talvez apareça mais do que o desejável diante da relativa falta, nesta específica dimensão, de idênticos atributos do Executivo e do Legislativo.
Finalmente, cumpre apontar para a renovação da experiência democrática.

Trata-se aqui de cuidar não do método de escolha dos governantes, mas já da experiência democrática da sociedade. A sociedade brasileira, sabemos, carrega uma ainda herança de exclusão, hierarquias sutis, às vezes nem tanto, e de práticas pouco aceitáveis ainda provenientes do particular modo como foi sendo construída. Ou seja, uma herança desenhada mais a partir de relações pessoais e menos a partir das exigências do império do Direito. A Constituição oferece um quadro de referências normativas refratário a essa herança. Daí a exigência de transparência na Administração Pública, o combate ao nepotismo, ao patrimonialismo, que repercute também em outras dimensões (relações no interior das famílias, das empresas, etc). A Constituição, portanto, fornece o fermento para a modernização da sociedade, para a quebra da herança insustentável, para a democratização das relações sociais. Temos aqui também um avanço considerável que, é certo, deve ser tributado à dinâmica da própria sociedade brasileira que se moderniza combatendo a tradi&ccedi,l;ão hierarquizante, mas à dinâmica de uma sociedade que encontrou na Constituição uma aliada á altura.

Os direitos e garantias inscritos na Constituição Federal têm tido efetivo cumprimento? Como manter as conquistas constitucionais e concretizar todos os princípios da Carta Magna?

Os direitos fundamentais entraram na agenda do debate público. Isso é novo na experiência nacional. Eles contam. São reclamados. Uns são mais efetivos que outros, como sabemos. Mas a consciência crítica da sociedade é a principal aliada dos direitos fundamentais em busca de cumprimento. O processo de realização é contínuo, permanente, especialmente dos direitos sociais que jamais alcançam um ponto ótimo. A manutenção das conquistas constitucionais depende de uma vigilância permanente,uma prática constitucional compromissada e de um Judiciário independente. Temos muito a fazer. Mas estamos no bom caminho.

Como o senhor avalia as recorrentes reformas do texto constitucional? Até que ponto o grande número de emendas, 62 até o momento, prejudicam a consolidação dos direitos sociais garantidos pela CF?

A Constituição foi promulgada na antevéspera da queda do muro de Berlim. Na parte regulatória, a Constituição adotou modelos que não suportaram as transformações ocorrentes nos últimos anos. Isso explica em parte a necessidade de várias emendas constitucionais. Nem todas as aprovadas, todavia, podem ser racionalmente justificadas. Algumas foram desnecessárias. Outras, desafiam crítica aguda. É claro que as reformas somente se justificam quando verdadeiramente indispensáveis. Não é o que tem acontecido entre nós. A reforma recorrente, como todos sabem, contribui para a erosão da força normativa da Constituição. As reformas constitucionais exigem parcimônia e apuro técnico. E isso, lamentavelmente, tem faltado muitas vezes.

Em sua opinião, a Constituição Federal de 1988 foi capaz de conduzir as transformações aguardadas pela sociedade?

Como disse, antes, com suas virtudes e seus defeitos, a Constituição tem permitido uma renovação da sociedade brasileira. Claro que isso se deve à dinâmica da própria sociedade, que se moderniza. Mas a Constituição oferece o quadro normativo e de valores capaz de aprofundar essa transformação. Uma mudança que caminha em direção à construção de uma sociedade mais plural, mais democrática, menos hierarquizada, mais livre, mais justa e, conseqüentemente, mais democrática. Uma sociedade inteiramente submetida ao império do Direito. Temos, um longo caminho pela frente. Os desafios são enormes. Mas devemos tomar a Constituição como aliada nessa tarefa. E não o contrário.