Os professores de democracia

Há poucas semanas convidado pelo professor Manoel Eduardo Gomes e Camargo, fui fazer uma palestra na cadeira de sociologia jurídica do curso de Direito da UFPR, sobre Vilfredo Pareto e a Teoria das Elites. Enquanto estava na sala de espera, avistei o quadro com o retrato do professor Lamartine Correa, e dali veio o desejo de escrever sobre os professores da geração de 68, que formaram sua didática na vigência da Constituição de 46, num dos períodos mais longos de democracia vividos pelo Brasil.

Lembro dos seus alunos, ainda adolescente, lá em Campo Mourão, quando chegavam as férias nas faculdades em Curitiba e eles voltavam para suas casas no interior do Estado. Às vezes levavam um grupo de teatro junto para se apresentar, livros e ainda nos deixavam um plano orientando nossa rotina de estudo, nos disciplinando a ler, até voltarem nas próximas férias. Eram alegres, amavam a liberdade e a democracia, e brincavam com as descobertas do saber acadêmico. Um ano eles não voltaram. Lembro como hoje, eu tinha 13 anos, ao invés deles irem, eu vim visitá-los no presídio do Ahú, onde estavam encarcerados, presos num grande salão, onde ficavam ouvindo as rádios internacionais para saber notícias do mundo e do Brasil, pois aqui naqueles anos 70 se tinha pouca notícia. Ocupavam seu tempo conversando sobre literatura, teatro, cinema, a filosofia e também sobre a política, e como estudavam, era admirável aquela geração, formada antes da reforma do ensino. Antes de se despedirem davam a sintonia das rádios internacionais para escutar e incentivavam ao estudo e a assistir bons filmes. Quando saíram do presídio, torturados física ou psicologicamente, foram tentar recomeçar a reconstrução da democracia. Muitos tiveram que ir embora para o exílio, com medo de morrer, na despedida disseram que voltariam logo para fazer grandes transformações no Brasil. Ledos enganos, teriam que ficar por lá por muito mais tempo que o imaginado. Começa um período de tristeza, distantes dos amigos e das famílias. Aqueles jovens alegres e estridentes não vinham mais para as férias, estavam longe de nós. E alguns professores, aqueles que formaram sua didática sob a vigência da Constituição democrática de 46, ficaram trabalhando para que os estudantes voltassem.

Lembro em 73, o golpe chileno, quando meu pai, como também alguns professores pediam às autoridades brasileiras para aceitarem a volta dos exilados, presos nos estádios ou foragidos em embaixadas, e as autoridades da época viravam as costas, enquanto os familiares choravam pressentindo as perdas, ao som dos discos chilenos, lendo os cantos do lendário Victor Jarra.

Lembro quando em 74 vim morar em Curitiba, que uma das primeiras orientações era visitar o saudoso professor Lamartine Correa, e lá fui eu, até o seu escritório para falar sobre a situação dos exilados, e receber notícias deles, pois o professor Lamartine Correa estava cuidando dos estudantes, mesmo longe. A outra orientação, que também segui, era matricular-me no segundo grau do Colégio Camões, escola onde ministrava aula o professor Sanches.

Em l978 ingresso na PUCPR, no curso de Direito, e nos primeiros dias de aula quando o professor Ronaldo Botelho faz a chamada, ao ler meu nome, pára, e faz uma homenagem aos familiares dos exilados, o que deixou meus colegas perplexos e alguns amedrontados, era ainda um tempo difícil. Jovem, tive a oportunidade de conhecer o exemplo daqueles professores destemidos, que falavam para todos ouvirem sem recear o governante de plantão. Que força e personalidade, a mesma daquela geração de 68, e aí entendi que muito foi transmitido por eles. Eram professores sem mestrado, doutorado, autodidatas, mestres da vida, que independente de concordarem com os ideais dos seus alunos, defendiam o direito de ter ideais, pois viveram durante um longo período de democracia.

Presto concurso e ingresso na CEU, e lá iniciamos a organização de um comitê pela anistia, com o incentivo e apoio de alunos mais velhos dos cursos de Direito, alunos daqueles professores que lutavam pela volta dos estudantes, que moravam lá e do jornalista Luiz Fabio Campana, amigo de muitos exilados. Foi um período difícil mas rico, minha geração trabalhava pela reorganização do movimento estudantil e a reconstrução da UNE e da UPE, entidade hoje restaurada. Ao passar em frente, lembro quando vinha a Curitiba, visitar meu irmão Vitório no presídio, ia até lá e via aquele símbolo de uma geração efervescente. Hoje quando passo em frente vejo um prédio lindo, um guarda sentado na varanda e uma entidade vazia com um capinzal crescendo na frente. É triste.

Ao iniciar o processo de abertura, fruto da participação social, vem a anistia e o retorno dos exilados, alguns voltaram e outros estão lá até hoje, a exemplo de meu irmão Nelson, pois não basta dizer voltem, sem dizer em que condições, depois de anos. Com a anistia alguns estudantes retornaram. Mesmo após prisão, tortura e exílio, continuavam a encontrar forças para a alegria e para retomar a democracia. Às vezes pensativo, me pergunto de onde vem esta força, talvez no exemplo daqueles professores altivos e resistentes. A reorganização do movimento estudantil vai evoluindo, passamos a dirigir os DCE’s da UFPR e da PUC, a UPE e a CEU e nos encontramos com outros alunos daqueles professores que lutavam pelo retorno dos estudantes já como nossos professores e incentivadores, respaldando nossas ações pela redemocratização do País e pela melhoria das condições de ensino, pregando a necessidade da Constituinte, da propriedade ter função social e do direito de ampla liberdade de organização social, enfim nos protegendo e nos orientando para os debates. Eram professores jovens e idealistas, espalhados pelas faculdades de Direito, alguns já na direção da OAB-PR e com participação política e partidária no processo de redemocratização do Paraná e do Brasil, e que acabaram assumindo importantes funções na direção das instituições de nosso Estado.

Neste momento lembro o saudoso professor da UEM, Horácio Raccanello Filho, coordenador estadual do movimento pela Constituinte livre e soberana, mestre de vasta cultura, que nos falava da importância de uma nova Constituição, nos contando com sabedoria como tinha sido o período da elaboração da Constituição de 46. Enalteço aqueles professores e aqueles estudantes pois quando vejo muitos falando e escrevendo teoricamente sobre democracia ou falando com didática esquemática e rebuscada é muito diferente de terem agido e vivido como democratas, naquele tempo, e poucos tiveram essa coragem.

E no exemplo de meu pai, um vereador de cidade do interior, que lutou durante oito anos pelo retorno dos seus filhos ao País, mas que morreu sem vê-los, e como foi difícil para ele morrer sem ver seus filhos, fato que relembrou para mim o professor e ministro do STJ dr. Milton Luiz Pereira, quando fui cumprimentar o nosso ex-prefeito de Campo Mourão homenageado recentemente, que tão bem testemunhou esta história, como um amigo, rendo minha homenagem a esses mestres e àqueles que se foram, pois se muito se escreveu e se editou sobre a geração de estudantes de 68, devemos ressaltar a importância da didática democrática dos professores que tiveram sua formação na vigência da Constituição de 46. Homens que independente de suas concepções filosóficas defendiam o direito de opinião democrática. Com gratidão e humildade penso que se o destino me levou a conviver com eles, posso me considerar privilegiado, pois se estive com eles algumas vezes como amigo, e não como aluno, também estive com eles através de seus alunos, que como meus professores ou amigos me mostraram muito como eles eram.

Geraldo Serathiuk

é advogado.

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