Os partidos repartidos

Ao descortinar um horizonte matizado por um diálogo franco com a sociedade, o presidente eleito terá de enfrentar não apenas as naturais pressões decorrentes das demandas originadas nas representações com assento em seu conselho consultivo, mas um formidável paredão de tensões a ser formado pelas agremiações políticas. Se na administração que chega ao fim os partidos não conseguiam disfarçar as escaramuças entre grupos e líderes, no governo sob comando petista as disputas intrapartidárias serão mais acirradas. A explicação para o fato está nas possibilidades assinaladas pela nova modelagem política, mesclada por contornos indefiníveis e grandes interrogações.

Convém explicar o pano de fundo sob o qual se desdobrarão os eventos intra e interpartidários. É consenso que a vitória de Lula constitui um marco na fisionomia política do País. Mudanças ocorrerão em práticas e costumes, se não pelo ideário do PT, partido que continua a migrar para o centro, ao menos pela intenção manifesta do presidente eleito de dar um sacolejo na política. É difícil escapar à sensação de que o ex-metalúrgico, de tão impregnado pela crença na força mística de sua missão, vai querer marcar seu governo com o bordão “ou vai ou racha, ou tudo ou nada”. Seu projeto de poder está vigorosamente alicerçado em eixos centrífugos, que somam a capilaridade crescente do PT em todas as regiões a uma aritmética que lhe confere o perfil de a mais auto-sustentável entre todas as agremiações. Basta fazer a continha: 27% dos salários dos quadros petistas de staff e gordas fatias de proventos parlamentares vão para os cofres do partido.

Diante dessa perspectiva, agitam-se os partidos, motivados principalmente pela sensação de que “nada será como antes”. Cada qual e cada grupo começam a tomar posições com vistas à conquista de espaços na nova arquitetura. Três grandes núcleos se organizam: um ficará na oposição; outro, na observação do alto do muro; e o terceiro abrigará a situação.

No PSDB, o presidente do partido, José Aníbal, se esforça para tornar viável uma ampla frente de oposição, reunindo aos tucanos os peemedebistas e pefelistas, o que, convenhamos, não é uma hipótese de todo descartável no médio prazo. Seria um perigo para o novo governo. Os tucanos, antes de ir para a oposição, concederão um período de carência para que Lula possa engatar as marchas da administração. O PFL, repartido entre o grupo baiano comandado por ACM, solidário circunstancialmente à Lula, e a facção Bornhausen-Maciel, mais resistente, poderá transformar-se, adiante, em pólo nítido do oposicionismo. No PMDB, as dissensões continuam: a ala comandada por Michel Temer garante apoio à governabilidade, sem cargos na administração, o mesmo que deseja o grupo de oposição, cujo interesse maior é conseguir se colocar como interlocutor da nova administração.

Do lado da futura situação, o PL, até então monolítico, já começa a dividir-se, com as primeiras estocadas no comando desferidas pelo grupo evangélico, que vislumbra fatias do poder. Pode-se, ainda, apostar no racha entre as alas moderada e radical dos partidos de esquerda, a partir do próprio PT. E quem acredita que perfis como Ciro Gomes e Garotinho vão reverenciar, por muito tempo, o novo presidente?

O acirramento das disputas gerará tensão na arena política. O pragmatismo, para satisfazer necessidades precisas e concretas, minará os confrontos doutrinários, aumentando o grau de despolitização e carimbando as siglas com o epíteto que Otto Kirchheimer chama de “catch-all parties” (“agarra tudo o que puderes”). A nova administração terá de se desdobrar para satisfazer as demandas pessoais e grupais. O jogo político, menos contrastado, esfumaçará as identidades partidárias, intensificando a fulanização política. Ora, nesse cenário, é possível se distinguir um acentuado nível de instabilidade, que se projetará sobre a moldura mais ampla das instituições, devendo ocasionar estrangulamentos. Muita água será necessária para apagar incêndios. Lembre-se que a manivela das mudanças, a ser comandada pelo presidente Lula, corre o risco de não se encaixar nos parafusos mentais de cultores de uma política tradicional e de atores de sua própria peça.

Ante os impasses, o novo governo terá uma saída: apressar a reforma política, até porque, se não for feita no primeiro ano da administração, será difícil de ser aprovada no curso do pleito municipal de 2004.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail:

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