Operários em construção ou enquanto os textos não chegam

A noite está insuportavelmente quente. A sala, além de abafada, não oferece conforto: alunos demais, espaço de menos, visibilidade restrita. O silêncio, no entanto, permite o divagar do pensamento. Desta aula de produção de texto eu gosto. Feita a preparação das nuances e contradições do assunto, o debate que se seguiu trouxe para a classe idéias e informações.

Na lousa, as palavras se destacam contra o fundo verde-garrafa. A proposta desta noite pode render bons textos, na argumentação e na profundidade do tratamento. Foram duas aulas de trocas acaloradas. ?A exclusão social e seu reflexo na escola?. Minha letra, deformada pelo uso do giz e pelo excesso de escrita ao computador, parece acentuar o desconforto que o assunto provoca.

Debruçados sobre o papel, caneta ou lápis a correr nas linhas, alguns alunos mostram-se à vontade na exposição do pensamento. Outros, a olhar paredes e texto, passeiam os olhos buscando socorro e inspiração. Com visível angústia, alguns poucos alunos dedicam à borracha ímpetos dilaceradores, rasgando palavras desenhadas no papel, arrependidos do já escrito e prometendo maior satisfação nas novas palavras que vão sendo grafadas.

Passeio defronte os estudantes da primeira fila e deixo os olhos dançarem livres sobre as cabeças dos estudantes, investigando sem compromisso o material sobre as carteiras, sendo fisgado por um ou outro traje, penteado ou trejeito, reveladores de personalidade, crença ou afeto.

Sei o quanto de trabalho é investido na escrita. Fui aluno de poucos e minguados textos, extraídos a sangue da cabeça que teimava em enveredar por assuntos e lugares distantes da proposta temática do meu professor. O pior, porém, era sentir o peso do olhar docente sobre mim, como a prever a catástrofe da escrita e os rabiscos em vermelho que assinalariam minha condenação de escrevinhador.

Um aluno da última fileira (ah, a síndrome da turma do fundão!) acena para mim com olhos pedindo auxílio. Cuidadosamente desvio de carteiras, pés e cotovelos para chegar ao solicitante. Enquanto me aventuro pelo estreito corredor, entrevejo letras e diferentes estágios de escrita. Alguns alunos já construíram um esquema das idéias (o tal mapa conceitual da moderna metodologia), outros navegam sem bússola alguma, guiados pelo jorro das palavras, outros, ainda, interrompem a escrita ao intuir meu olhar, os mais tímidos sorriem contrafeitos, alguns insinuam num sutil movimento de cabeça um pedido de ajuda. Vou atravessando mar e ventania rumo à ilha desconhecida da última fileira, não sem constatar na travessia que a exclusão derepente impedirão a entrada dos pobres na escola concerteza devido a dificculdade onde eles têm de estudar.

Uma imagem assalta-me o cérebro com a rapidez da luz. Eu, apoiado sobre minha mesa de trabalho, a pilha de folhas de escrita quase ilegível, caneta em punho a sublinhar, circular, desenhar símbolos de um código de correção, tomado pelo cansaço e pelo desânimo resultantes da constatação das dificuldades sempre as mesmas encontradas na avaliação dessa atividade tão vilipendiada, embora tão significativa, da construção de textos em língua materna.

Antes que ganhe força o pensamento na aposentadoria, a ocupar os aposentos ainda iluminados pela esperança no magistério – jurado, em noite solene de formatura, que seria dedicado ao bem da comunidade – chego à carteira da última fila.

A me esperar, uma folha quase em branco, algumas garatujas e o olhar tímido complementado pela voz sussurrante: ?Professor, como se escreve gente? Com jota ou com gê??. No papel, a frase era: ?Na vida, tudo que a xx xx ente não quer é ser excluído.?

Após as hesitações, brilhava, ofuscante, no pensamento, na linha e na máxima expressa naquele texto mínimo, a palavra ?ente?, a clamar pela natureza essencial e existencial do humano.

Vou corrigir, meu caro aluno, seu texto final com círculos e traços, mas desde já, acredite, estou a seu lado. Sentir-se indeciso na ortografia ou fragilizado na expressão verbal também é uma forma de marginalização. As barreiras da escrita precisam ser vencidas, para que o pensamento possa espraiar-se sem margens, nem obstáculos. Ente, gente, junto: a exclusão precisa ser excluída, da primeira à última fila.

Voltar ao topo