O velho PT de guerra

A grande discussão política do ano foi gerada pela perplexidade causada em todos os meios – incluindo amplos setores do próprio partido do governo – pela aparentemente enorme contradição entre o que o PT pregou ao longo de toda a sua história e as medidas que vem adotando na prática, desde que atingiu o Poder. Em uma palavra: o governo petista vem fazendo exatamente tudo aquilo que sempre condenou, quando na oposição. De repente, parece uma verdade definitiva aquela da qual os cínicos sempre se utilizaram: o poder, de fato, corrompe!

No entanto, mesmo que pareça difícil compreender, em verdade não há contradição alguma. O que acontece é exatamente o contrário! Trata-se de coerência, e da pura. Por incrível que pareça, o PT governista mantém total identificação de conduta com a história construída pelo bom e velho PT oposicionista.

É isso mesmo.

Explico. O objetivo de todo partido político, em qualquer lugar, é chegar ao poder para, uma vez ali, tentar implementar suas idéias e sua visão de mundo, que considera a mais correta. Com o PT, desde sua fundação, não foi diferente. O que diferencia uns partidos dos outros é a estratégia e os métodos de que cada um deles se utiliza para atingir aquela meta.

A estratégia mais comum a todos é crescer, crescer e crescer. O poder vem como conseqüência. A questão é: como crescer? Ou seja, o busilis está na tática, nos métodos. Até que ponto se pode barganhar no preço? Se nos detivermos, por pouco que seja, na história do PT, veremos, sem qualquer dificuldade, que a sua tática sempre foi a de colocar seus interesses em primeiro lugar. Nunca importou o custo, mesmo se ele fosse um atraso para o próprio País.

Uma certa visão messiânica, que pode ser vislumbrada na própria concepção do PT, e pela qual ele, e somente ele, seria capaz de dar ao Brasil seu merecido destino, causou esta distorção espantosa, subordinando seu compromisso para com o Brasil àquele que tinha para consigo próprio. Decorre daí, sem apelação, que o primeiro compromisso do PT nunca foi para com sua própria ideologia.

A ilusão, contudo, é tão bem elaborada, que chegou a enganar até mesmo alguns de seus mais destacados militantes, agora punidos com expulsão, ou mesmo se auto-excluindo, simplesmente por continuarem defendendo o que todos sempre defenderam. Ora, é por causa daquela distorção, no que tange aos seus compromissos, que agora o PT se vê nessa sinuca.

Vejamos alguns casos concretos nos quais ela se manifestou ao longo da história recente do País. Por exemplo: sabemos que se dependesse do PT, o primeiro presidente civil pós ditadura teria sido ninguém menos do que Paulo Maluf, não é mesmo? Naquele momento, tratava-se de decidir o que seria menos danoso ao País. Entretanto, mantendo-se “puro” (“nem Maluf nem Tancredo”), o partido capitalizou a imagem de sério, e mandou às favas os interesses do Brasil!

Cresceu, claro, mas ainda bem que nem todos à esquerda agiram como ele (talvez, aliás, ele próprio contasse com isso), com o que evitou-se a vitória de Maluf. Porque nem mesmo um estulto completo poderia imaginar que a transição do País à democracia teria ocorrido sob Maluf do modo como veio de fato a ocorrer. Claro que Sarney não era o ideal para a esquerda. Nem mesmo Tancredo o era, ora bolas!

Mas ignorar a conjuntura que obrigou Sarney à transição, e igualá-la à que ocorreria sob Maluf é no mínimo hipócrita. Para dizer o mínimo. A prevalecer a posição petista, a democracia brasileira estaria muitos anos atrasada, em relação ao estágio em que efetivamente se encontra.

Mais? Vá lá. Agindo assim, o PT colocou Jânio na cadeira de prefeito de São Paulo, ao invés de Fernando Henrique. Agindo assim, o PT engajou-se na campanha presidencialista quando do plebiscito que poderia ter modernizado enormemente o sistema político brasileiro (e desta vez, infelizmente, ganhou, e o Brasil perdeu), tão somente porque imaginava que no parlamentarismo ser-lhe-ia muito mais difícil empalmar o poder.

Agindo assim, evitou “contaminar-se” assinando a Constituição de 88, porque ela não havia saído de uma “constituinte exclusiva”. Mas lutou para nela inserir uma revisão a ser feita dali a cinco anos, a fim de ajustá-la a seus interesses. E, quando chegou o prazo pelo qual lutara… a correlação de forças o desfavorecia frente às hostes conservadoras. Assim, pregou abertamente que a revisão era “golpe”, e que aquela Carta que boicotara deveria ser respeitada como estava.

Os exemplos são inúmeros, e poderíamos aqui estender com eles essas humildes linhas. Não é o caso, todavia. Aqueles, acima, já ilustram suficientemente o ponto que se quer discutir.

Em todos esses episódios, assim como em outros, ou o País perdeu e atrasou-se, quando a posição petista prevaleceu, ou teria perdido, se ela tivesse prevalecido. Em todos, contudo, o PT ganhou. Creditou-se não só perante sua própria militância, mas também perante setores sociais, ingênuos mas crescentes, como sério e coerente.

E, assim, cresceu. Poder-se-ia dizer que até demagogicamente, em certa medida. Mas cresceu, de fato. Por que, então, alterar uma tática vitoriosa? A verdade, senhoras e senhores, é que, oposição a FHC, o PT deveria combatê-lo em todos os quadrantes, a fim de manter-se na ofensiva, coerente com tudo o que sempre fizera.

Não porque realmente acreditasse no que dizia, até porque essa nunca foi mesmo sua prioridade, mas sim porque isso era o que lhe garantiria o avanço perante a população, o crescimento, a perspectiva concreta de poder. FHC queria reforma da Previdência? Então somos contra! FHC queria taxar os inativos? Absurdo! FHC queria reforma tributária? Deus nos livre!

O bom e velho PT de guerra, meus amigos, não estava pregando exatamente aquilo em que acreditava, ou que pensasse ser melhor para o País. Como sempre, ao longo da história, não era isso que o preocupava em primeiro lugar. Como sempre fizera, estava apenas se utilizando do método, já comprovado, que o faria crescer e credenciar-se a alcançar o poder.

Pura coerência, portanto. Deu certo. O PT chegou ao poder. Só que lá a história é outra. De estilingue a vidraça, a mudança é transcendente. A questão agora é que, ineditamente, o partido e o País estão no mesmo barco. Não dá mais pra imaginar que o PT pode dar certo com o Brasil dando errado. Seus destinos se uniram. Então, o bom e velho PT de guerra, pela primeira vez na sua vida, para respeitar seu compromisso histórico consigo próprio, viu-se obrigado a colocar o Brasil em primeiro lugar. E, assim, rever (o que fez sem muita dificuldade), o ideário do qual se utilizou para chegar até lá.

Marcelo Jugend é advogado.

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