O Tempo da Memória

“O tempo da memória segue um caminho inverso ao do tempo real: quanto mais vivas as lembranças que vêm à tona de nossas recordações, mais remoto é o tempo em que os fatos ocorreram.

Cumpre-nos saber, porém, que o resíduo, ou o que logramos desencavar desse poço sem fundo, é apenas uma ínfima parcela da história de nossa vida.

Nada de parar. Devemos continuar a escavar!

Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver” – escreveu  Bobbio.

Sua obra “De Senectute”, de 1996, é um escrito autobiográfico que trata desde velhice, até Direito e, em especial, o poder. A edição brasileira – O Tempo da Memória, 1997 – é prefaciada por Celso Lafer, que acentua, com propriedade:

“… o tempo da memória na busca do significado para lidar com a velhice e  a vida”.

Norberto Bobbio morreu aos 94 anos, a 09 de janeiro de 2004, nascido em Turim em 1909.

De preso político, nos anos 43/44, face sua luta antifascista, é nomeado senador vitalício por Sandro Pertini, presidente da República da Itália, em 1984, pelos “altíssimos méritos no campo social, científico, artístico e literário”.

Sólido filósofo e pensador político, entrelaça sua extensa obra no campo da filosofia e da política, com notáveis estudos jurídicos.

Por mais de cinquenta anos é professor nas Universidades de Turim, Siena e Pádua. Dentre centenas, famosas suas obras Destra e Sinistra (Direita e Esquerda, editora Unesp, 1994), Teoria Generale Della Politica (Teoria Geral da Política, editora Campus, 2000), “O Problema da Guerra e as Vias da Paz” (editora Unesp, 1979), “Thomas Hobbes” (editora Campus, 1989), “Estado, Governo e Sociedade” (editora Paz e Terra, 1997).

Vamos, pois, como dizia Bobbio, a desencavar esse poço sem fundo da memória…

No velho templo do saber, a Universidade

Escrevi, em setembro de 1994, a pedido dos estudantes de Direito de nossa Universidade Federal, texto publicado no centésimo número do jornal Folha Acadêmica, do tradicional e combativo CAHS (Centro Acadêmico Hugo Simas).

No breve artigo, ao reviver os tempos de estudante, então o que minha  pena captou foram  sinais (ou marcas?) inscritos nas paredes do velho templo do saber:

“Há uma sensação estranha ao adentrar a Faculdade. Como ela se situa nas mesmas condições da minha época (57/61), parece que o tempo não passou.

Mas há um fator mais forte que alimenta este misto de mistério/temor. Meu filho é estudante alí, os filhos de meus colegas e amigos também alí estão.

Se me ressituo no tempo, qu,erendo equiparar épocas distantes, cometo o erro infantíl da identificação pelas aparências. Se refuto a similitude, erro em não prestar atenção à repetição da história.

De qualquer modo, o velho salão nobre continua tão nobre como antes, as escadarias ainda sustentam as arcadas, os velhos livros são obrigatórios nas citações clássicas.

Enquanto isso, os alunos fazem contas de chegar de suas possíveis oportunidades profissionais.

Mas passaram-se alguns anos.

Tenho que detectar o que pode ser igual, ou semelhante, e o que se diferencia.

Primeiro, valores: de honradez, dedicação e competência, que os profissionais do Direito (e outros, por certo, também) devem levar a vida afora.

Segundo, aptidões: os caminhos diversos que serão escolhidos que nos distinguem nas funções da vida, na aplicação do que aprendemos.

Nesta conjugação de valores-aptidão, servirá a possibilidade que se tenha na apreensão da teoria e pesquisa, com a inserção na vida cultural-social-política do momento em que se vive.

Estudante de Direito que se aliena de seu tempo, carregará o vício da desatualização e isto poderá lhe ser fatal”.

O texto, assim, caminha na análise da relação pais e filhos, a projeção de que os erros daqueles acabam sendo ônus para estes, sucessivamente, refletindo-se no plano social-político, para acentuar:

“Se me volto para algumas memórias dos anos que se foram, é para situar o que acontece e o que virá. Sartre já disse que ‘cada presente tem seu futuro que o ilumina e desaparece com ele, transformando-o em futuro passado’. O que acontece hoje se baseia no que sucedeu no passar dos tempos e houve a acumulação dos fatos da vida social e material. Mas o que virá, o futuro, ilumina o que estamos fazendo neste momento.

E hoje há duas questões centrais: resgatar valores (ética e dignidade) e afirmar cidadania (direitos sociais e humanos). Para um estudante de Direito trata-se de algo vital este resgate e esta afirmação. Se bem assimilados agora, serão projetados no futuro, na tentativa de reequilibrar a instável balança da justiça.

Cientes desta realidade, por certo será mais fácil percorrer o caminho que virá.

Qualquer rumo que cada um de nós vá tomar, estará pautado por questões ensinadas nas lições de casa e da escola.

Que valores continuam sendo fundamentais (da ética, da dignidade), princípios são sustentação de vida (liberdade e democracia) e direitos e deveres são pilares da sociedade (trabalhar, habitar, estudar, vestir, alimentar-se…)”.

Da Justiça à Democracia (passando pelos sinos)

Agora, ao relembrar acontecimentos (ou marcas, ainda?) que se inscreveram na memória coletiva da liberdade, veio-me o que escreveu José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, ao  analisar tarefas de resistência e luta em favor da Justiça, dos Direitos Humanos e, em especial, da Democracia, enfatizando: 

“Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma de suas negações.

Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença”.

A referência ao camponês de Florença está ligada ao fato, narrado no início de seu texto, do camponês que tocava os sinos, em uma aldeia de Florença, há quatrocentos anos, anunciando a morte da Justiça. 

Os sinos, soaram em 1964 (Os Idos de Março e a Queda em Abril)

Os sinos tocados pelo camponês soaram pelas nossas terras em 1964, anunciado a morte da Democracia e da Liberdade.

São quase meio século, mas eles ainda hoje são ouvidos, tamanha a intensidade com que foram tocados.

Oito notáveis jornalistas escreveram, ainda quando os sinos mais ressoavam em 1964 diante das tropas invasoras da Democracia e da Liberdade, um livro sensacional – “Os idos de março e a queda em abril”.

Relataram minuciosamente, como sabem relatar os grandes repórteres – os acontecimentos de

-13 de março – o dia e a noite do famoso comício na Central do Brasil, pelas reformas de base, com o Presidente João Goulart, pela primeira vez acompanhado em um comício por  sua bela esposa Maria Teresa Goulart

– até 15 de abril – quando é empossado o General Castelo Branco na Presidência da República, dias antes imposto pelo Congresso Nacional por 361 votos da ditadura-civil-militar contra 72 abstenções.

Foi a narração de trinta e três dias, quando se passou a viver “um outro Brasil”, na expressão de Alberto Dines, um dos jornalistas-testemunha da história. Seu texto se intitula: “Debaixo dos Deuses”.

E começa sobre o 13 de março:

“Os grandes dias começam com uma distensão. Só depois vem o pressentimento. Esta sexta-feira 13, que todos antecipavam como perigosa e fatídica, começou macia”.

E já no comício:

“A esta altura já estávamos em plena vigência dos archotes e dos gritos.; diante de 200 mil pessoas, o Deputado Leonel Brizola perguntou à massa: – ‘Quem é a favor das reformas?’. E todos responderam com o braço levantado”.

E, ao relembrar o dois de abril, já depois do golpe militar, escreve, amargurada-mas-realisticamente:

“E foi graças ao mundo que se detinha para nos contemplar que conseguimos sair daquela pequena esfera mesquinha sofrida e viciada a que estávamos confinados. Crescemos, então. Vinte e quatro horas depois, as coisas e os homens voltaram à sua estatura natural. Compreendemos: não foram só os generais que derrubaram Jango. Quem derrubou Jango foram os que não saíram para defendê-lo. Tratava-se de uma eleição. Houvera uma opção clara. Não foram os planos militares que derrotaram as esquerdas. Foram os sentimentos contra elas”.

E, finalmente, a 15 de abril, relatando a posse do general Castelo Branco na Presidência da República:

“Numa cerimônia simples, sem gala, o novo presidente do Brasil é empossado. Trinta e três dias depois do comício da Central, vivíamos em um outro Brasil. Os historiadores já o classificavam como a VI República. Para nós, debaixo dos deuses, era um dia igual”.

O dia-a-dia magistralmente assinalado no livro-reportagem, poderia ser anotado  em milhares de outros livros e reportagens de cada acontecimento que atingiu o povo brasileiro e seus personagens mais significativos.

Em um destes episódios – fundamental para a história do Direito e da Política de nosso Estado, de nosso País, de nossa Universidade Federal – envolveu o professor e advogado José Rodrigues Vieira Netto.

2.     José Rodrigues Vieira Netto, o discurso proibido

A Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Paraná, instituiu a medalha José Rodrigues Vieira Netto, em reconhecimento a advogados com relevantes serviços prestados à causa da Justiça, do Direito e da Classe dos Advogados.

Já foram homenageados os eméritos advogados  Alir Ratacheski, Egas Dirceu Moniz de Aragão, René Dotti e Eduardo Rocha Virmond.

Vieira Netto (foto) viveu de 1912 a 1973. Da turma de 1932 da Faculdade de Direito da UFPR, alcançou fama de ser o melhor advogado paranaense.

Catedrático de Direito Civil da UFPR, cassado por decreto da ditadura militar, aposentado compulsoriamente em 1964, preso pelo Exército e processado pela Auditoria Militar.

Eleito Deputado Estadual Constituinte em 1947 pelo Partido Comunista Brasileiro. Seu mandato parlamentar foi cassado em 1948, assim como os demais mandatos parlamentares estaduais e federais dos comunistas, após o PCB ter sua legenda extirpada pelo Tribunal Superior ,Eleitoral, com apoio do  governo federal, em 1947.

Presidiu o Conselho Seccional da OAB.PR nos anos 57/59 e 59/61.

Ele próprio instituiu o prêmio com nome de seu pai “Ulysses Vieira” ao melhor aluno de Direito Civil.

Tive a honra de tê-lo como professor na turma que integrei nos anos 57 a 61.

Um precioso relato de momentos da vida pessoal, profissional e política de Vieira Netto está contido no discurso de Eduardo Rocha Virmond quando da homenagem por ele recebida na OAB.PR., em 11 de dezembro de 2009.

Eduardo Rocha Virmond foi presidente da OAB.PR e nesta condição liderou a VII Conferência Nacional dos Advogados, realizada pelo Conselho Federal da OAB em Curitiba, sob a presidência do jurista e historiador  Raymundo Faoro, no ano de 1978. Um dos marcos na luta pela democracia e pela liberdade em nosso país, especialmente na campanha pela anistia, finalmente consagrada em 1979.

René Dotti em sua oração, também na oportunidade da homenagem que recebeu na OAB.PR, ressalta aspectos relevantes da vida de Vieira Netto, de quem fora advogado, juntamente com Élio  Narezi, para defendê-lo perante a Auditoria Militar e Supremo Tribunal Federal.  

E assinala:

“Entre as várias homenagens que na posteridade lhes são prestadas, uma delas é muito significativa. A sua imagem, o seu nome e o seu exemplo estão consagrados na entrada do Escritório Modelo da Faculdade de Direito. A mesma instituição da qual foi arbitrariamente afastado por ato de prepotência política e inspiração autoritária”.

A colação de grau de 1964

A colação de grau  dos bacharelandos em Direito da Universidade Federal do Paraná de 1964 realizou-se a 16 de dezembro. Presentes o Reitor da UFPR, José Nicolau dos Santos, o Diretor da Faculdade de Direito, Ildefonso Marques, o representante do Governo do Paraná, Alcides Munhoz Neto, o patrono da Turma, Ary Florêncio Guimarães.

Proibido de estar presente e de pronunciar seu discurso, o paraninfo, José Rodrigues Vieira Netto.

Os bacharelandos de Direito de 1964 da UFPR, em homenagem ao professor cassado e aposentado, o escolheram como paraninfo da colação de grau.

O Reitor e o Conselho Universitário desaprovaram a escolha. Os estudantes não cederam, mantiveram a indicação. Foi, então, imposta a fórmula milagrosa: o Reitor eliminou da solenidade a existência de paraninfo e, em conseqüência, o discurso tradicional.

Vieira Netto havia esboçado seu discurso na temática da Liberdade. Sabedor da proibição, deu-lhe o conteúdo final e o publicou. Os estudantes o distribuiram durante o baile de formatura. Nos dias seguintes, exemplares circularam de mão-em-mão, como ato de resistência à proibição.

Na apresentação do texto, Vieira Netto acentua:  

“… Na homenagem… nasceu este discurso, cujos temas foram formulados de improviso.

… como u’a mensagem aos moços universitários, e principalmente para denunciar à Nação, o clima de intolerância, de servilismo, ignorância e ódios pessoais que, a pretexto de uma revolução, se instalou em algumas universidades brasileiras.”

Sobre as Quatro Liberdades

O discurso que não foi pronunciado tem por título “Sobre as Quatro Liberdades”, a saber:

(1) Da Liberdade de Dizer

(2) Da Liberdade de Não Temer

(3) Da Liberdade de Crer

(4) Da Liberdade de Ter Segurança.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, consignou, no segundo parágrafo de seu Preâmbulo, que

“Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta inspiração do homem comum.”

Sintetizou as quatro liberdades essenciais, derivadas da luta contra o nazifascismo durante a II Guerra Mundial (39/45).

Foi nos Estados Unidos da América do Norte, em 06 de janeiro de 1941, que o presidente Franklin Delano Roosevelt, ao abrir seu terceiro período presidencial, havia pronunciado memorável d,iscurso perante o Congresso Nacional abordando quatro liberdades:

– o direito de palavra e de livre expressão

– liberdade de cada um celebrar Deus a sua maneira

– estar livre das necessidades, liberdade das coisas econômicas

– liberdade de estar livre do medo.

Vieira Netto ergueu sua peça oratória sobre esses pilares, na afirmação de que “as conquistas do Povo há muito derrotaram o exercício da violência pura e simples”, demarcando sua profissão de fé nas quatro Liberdades: de dizer, de não temer, de crer, de ter segurança.  

Ensinar os Homens de amanhã

Na abertura de seu discurso, ressalta sua missão de professor e a violência de lhe ser retirada essa condição:

“… ensinar os Homens de amanhã… transmitir-vos uma longa e dolorosa experiência profissional, dizer-vos como o Direito deve ser, como não é, nas suas intencionais deformações; corrigir o vosso Idealismo ingênuo, preparar-vos para enfrentar os fatos, as alternativas da carreira: ou alienar-se às causas que dão Lucro, ou alistar-se nessa imensa Legião do maior número – que só a essa se pode chamar de Humanidade.

Tiraram-me isso. Não me importava o salário modesto que nivela o professor universitário a um jovem aspirante mal saído da Escola Militar. Sempre vivi da minha banca profissional, do suor, da insônia das noites madrugadas em minha mesa de trabalho.

Não era aquele o salário. Pagavam-me, em cada manhã, os vossos olhos atenciosos, a vossa dedicação, as gratas palavras de vosso convívio, os progressos de vossa inteligência que se iluminava para a Vida, iluminando o contentamento da paga real que, assim, eu recebia”.

Uma caçada medieval às feiticeiras

Prossegue o mestre, relatando suas angústias e o absurdo de sua perseguição e prisão:

“Tiraram-me isso, também; Professor sem discípulos, advogado perseguido, cidadão sem direitos, tive de conhecer a angústia de ficar sozinho, o amargurado favor dos quartos de empréstimo, a procura de um vilarejo onde vegetasse anônimo, a traição, a covardia de alguns próximos, a maravilha de algumas dedicações, e a ausência de notícias – e as alarmantes notícias que faziam da prisão, do castigo, da tortura de intelectuais e operários, estudantes, soldados, professores, gente humilde, uma caçada medieval às feiticeiras.

Nada havia a temer dos meus feitos. Os meus pecados não contavam. Os grandes crimes da minha vida, eram o Trabalho e o Pensamento.

Assim, voltei. Para ser preso, processado, interrogado sobre os Livros que havia lido, as Opiniões que formara sobre a História Política, a Sociologia do meu País, sobre as Idéias que pensava e o Trabalho que fazia, o Ensino que eu transmitia”.

Estarei presente apenas na vossa recordação

E finaliza a abertura de sua magistral oração, expondo, com amargura, as atitudes de professores teleguiados e alunos delatores:

“Um inquérito universitário, através de catedráticos teleguiados, investigara a minha biografia, com a desinteressada, patriótica ajuda de alguns alunos reprovados, de delatores que queriam ser políticos, de outros, políticos, que só poderiam ser delatores, – com tão esplêndido material humano – chegara-se à conclusão um tanto exagerada, de que eu era “um professor brilhante, querido dos alunos e que, assim, poderia ser nefasto à mocidade”.

“A Pátria estava salva, todos os seus imensos problemas resolvidos.

Assim, estarei presente apenas na vossa recordação”.  

O discurso segue na análise das quatro liberdades, ressaltando citações bíblicas, a poesia de Pablo Neruda, o famoso discurso de Miguel de Unamuno na Universidade de Salamanca, Espanha,  contra o ditador Franco e a poesia de Carlos Drummond de Andrade.

Pequena grande obra notável se insere como uma das afirmações mais significativas na literatura jurídica e política de nossa terra:

“Cada um e todos sabem que é patrimônio jurídico da Humanidade o direito de pensar e de dizer – Que há um direito de não ter medo, conhecimento exato da inutilidade da violência. Há um direito de cr,er, de possuir convicções, de discordar das fórmulas milagreiras, de lutar pelas suas idéias, dentro da tolerância e do respeito pelas opiniões alheias e isso não pode ser proibido, classificado como crime, sancionado por tribunais de exceção, do mais primário subjetivismo: o julgamento pela premissa não formulada que é a “filosofia” pessoal do suposto Juiz”.

3.     José Lamartine Corrêa de Oliveira Lyra, a véspera dos bárbaros

Outro destes episódios marcantes foi assinalado por um dos mestres mais queridos pela juventude-universitária, o professor Lamartine.

José Lamartine Corrêa de Oliveira Lyra (foto) viveu de 1933 a 1987, nascido na cidade do Rio de Janeiro, onde se graduou e doutorou em Direito.

Professor de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e no curso de mestrado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Jurista renomado, militante político, católico fervoroso, consagrou-se como um dos mais ativos defensores dos direitos humanos.  

A Faculdade de Direito da UFPR instituiu prêmio com seu nome ao primeiro classificado em Direito Civil e a Ordem dos Advogados do Paraná realiza concurso de monografias em sua homenagem.

Professor admirado e respeitado, é uma das legendas históricas do ensino jurídico brasileiro.

Kaváfis, “À Espera dos Bárbaros”

Foi paraninfo da Turma “Des.Hugo Simas”, de 1967, da Faculdade de Direito da UFPR, tendo pronunciado seu discurso na solenidade realizada a 08 de março de 1968, sob o título “A véspera dos bárbaros”.

Abre seu discurso com a citação de Tristão de Athayde, pseudônimo do pensador católico Alceu Amoroso Lima:

“Ozanam, em pleno século XIX, durante a revolução de 1848, quando denunciavam as forças revolucionárias de então como os novos bárbaros que vinham destruir a civilização cristã, lançou o grito famoso que até hoje ecoa em nossos ouvidos – “Passons aux barbares” -. Passemo-nos para os bárbaros. Quando os civilizados traem, é pela mão dos bárbaros que o Espírito renova a face da terra”.

Referência a Frédéric Ozanam (1813/1853), beatificado por João Paulo II, doutor em Direito e Letras, professor na Sorbonne. Destaque ao fato histórico relacionado às revoluções européias de 1848, de caráter democrático-nacionalista,  conhecidas como “a primavera dos povos”.

Relembre-se, ainda, que o poeta grego Konstantínos Kaváfis (1863/1933) intitulou um seus poemas de “À Espera dos Bárbaros”, traduzido por José Paulo Paes (1926/1998), que merece transcrição:

    “O que esperamos na ágora reunidos?

    É que os bárbaros chegam hoje.

    Por que tanta apatia no senado?

    Os senadores não legislam mais?

    É que os bárbaros chegam hoje.

    Que leis hão de fazer os senadores?

    Os bárbaros que chegam as farão.

    Por que o imperador se ergueu tão cedo

    e de coroa solene se assentou

    em seu trono, à porta magna da cidade?

    É que os bárbaros chegam hoje.

    ‘O nosso imperador conta saudar

    o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe

    um pergaminho no qual estão escritos

    muitos nomes e títulos.

    Por que hoje os dois cônsules e os pretores

    usam togas de púrpura, bordadas,

    e pulseiras com grandes ametistas

    e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?

    Porque hoje empunham bastões tão preciosos

    de ouro e prata finamente cravejados?

    &Ea,cute; que os bárbaros chegam hoje,

    tais coisas os deslumbram.

    Por que não vêm os dignos oradores

    derramar o seu verbo como sempre?

    É que os bárbaros chegam hoje,

    e aborrecem arengas, eloqüências.

    Por que subitamente esta inquietude?

    (Que seriedade nas fisionomias!).

    Por que tão rápido as ruas se esvaziam

    e todos voltam para casa preocupados?

    Porque é já noite, os bárbaros não vêm,

    e gente recém-chegada das fronteiras

    diz que não há mais bárbaros.

    Sem bárbaros o que será de nós?

    Ah! Eles eram uma solução”.

Na linha filosófica-cristã traçada nos escritos de Alceu Amoroso Lima e na defesa dos postulados do Direito Natural, assenta-se o discurso de paraninfo, ao acentuar as características da época que se vivia e o papel dos juristas diante das tarefas que se impunham na luta pela Liberdade, Democracia e Justiça.

Em sua narrativa-denúncia aos bacharelandos, Lamartine Corrêa  antecipou-se, profeticamente, a J.M.Coetzze, Prêmio Nobel de Literatura de 2003, no seu famoso livro “À Espera dos Bárbaros” (“Wainting for the Barbarians”), de 1980, sobre a prática generalizada da tortura contra  os que são denominados pelos “guardiães do Estado”, como os “bárbaros inimigos”:

“E eis que por sobre o país vistes crescer a sombra negra e hedionda de inumeráveis processos penais militares em que o acusado o é por expressar esta ou aquela opinião política, contrária ao regime, ou por haver, quando isso era lícito, proferido discursos ou tomado parte em comícios. E se muitos foram os absolvidos, muitos também foram os condenados, sem falar dos presos na fase do inquérito, e dos submetidos a infames torturas, físicas e morais…”.  

Apenas um discurso essencial

Seu discurso é lido a 08 de março de 1968 – portanto, no auge da ditadura militar e, ao mesmo tempo,  da resistência popular contra o autoritarismo.

Sua primeira lição já está na abertura da notável peça oratória, quando se dirige em linguagem simples, direta, tratando aos bacharelandos de amigos:

“Se amigos somos, com linguagem franca de amigos é que vos falarei hoje. Não vos falarei de Direito Civil. Dele vos falei com escrúpulo e amor durante 4 anos. Um homem como eu, atingido fundamente pelo sofrimento, não se sentiria bem com sua consciência se, tendo recebido de amigos o honroso encargo  desta tribuna, dela se servisse para brincar com as idéias, ou para proferir dissertação técnica que ocultasse a gravidade da realidade social dentro da qual exercereis o ministério da lei. Cada ser humano tem apenas um discurso essencial a fazer, aquele que retrata o mais fundo de seu ser no desejo de comunicação pessoal com os outros homens. Na hora da partida, não teria sentido também falar-vos de um Direito abstrato, num país ideal. Só o pé na terra, o contacto firme com a realidade pode dar força e vigor a palavras ou ações humanas. Talvez seja este o sentido profundo do mito helênico de Anteu, que necessitava pisar com os dois pés sua mãe Géa, a terra, sob pena de lhe faltarem as forças”.

A missão do jurista

Após longa análise política em que denuncia o regime de força instaurado pelos militares, e de sublinhar relevantes aspectos jurídicos e teológicos, sua lição final no que se refere à missão do jurista enfatiza:

“O jurista, porém, vê mais alto, pois sabe que acima do Direito Positivo estão as normas que a  consciência humana descobre na natureza das coisas. Percebe que o gradativo refinamento da consciência humana – Direito Natural de conteúdo progressivo – é cada vez mais exigente quanto à adequação do Direito Positivo aos ideais humanos de liberdade, justiça, igualdade e fraternidade”.

“Parte de concepção, coerente do homem. Para essa concepção, a dignidade eminente de um homem deriva de ser ele pessoa. Por isso, os direitos que o enriquecem como pessoa – o direito de todos os homens aos bens materiais, o direito à cultura, à liberdade de expressão, e de culto, como direitos de todos, não podem ser sacrificados em nome de suposto direito de poucos ao supérfluo”.

“O jurista, que não é um leguleio, tem seus olhos fixos no homem comum, seu irmão, ao qual, em noite como a de hoje, jurou servir. E todo o seu trabalho, no Fórum ou no escritório, na cátedra ou na tribuna dos pretórios, defendendo, aconselhando, julgando, opinando, ou sugerindo mudanças no Direito Positivo, ou orientando e promovendo novo entendimento do Direito existente, há de ser orientando para a construção de um Direito novo cada vez mais próximo dos supremos ideais de Justiça, em que se inspira o Direito Natural”.

“Esta a vossa missão. Missão de austero serviço ao povo, que não se compadece com pretensões ridiculamente aristocráticas”.

Um Brasil nosso, de seu povo

E completa:

“É chegada a hora da partida. Compreendei que, de tudo o que eu disse, não há que retirar uma lição de desânimo, mas um canto de alegre decisão. Não de trata de meditar sobre o Direito em crise. Trata-se de construir o Direito novo, a serviço do homem, e de todos os homens, Para tanto é necessário a coragem de não trair. A intrépida paixão da Justiça. É preciso pedir sopro que anima os heróis. Implorai do Senhor da História o sopro que reacenda e mantenha viva a flama que a vida pode ter esmaecido no moço que hoje se forma. Com as armas do Direito e da Justiça, ajudai a preparar um Brasil que seja nosso, e de seu povo, e não de poucos, e nem dos outros. Iluminai a grande noite ao caminhar. Deus vos guarde!”.

4.     Garcia Lorca: “Tardará muito tempo em nascer…”

Juristas como Vieira Netto e Lamartine Corrêa – de bases e formações filosóficas distintas, por vezes antagônicas – desempenharam, em um momento crucial de nossa luta pela Liberdade e pela Democracia – papéis fundamentais na afirmação dos pressupostos básicos da Universidade.

E assinaram, por antecipação, o documento básico que nasceu do destemor de todos os que, com fé e firmeza, concretizaram os direitos básicos de nossa sociedade, consubstanciados nos princípios fundamentais inscritos em 1988 em nossa Constiuição-cidadã, dentre eles o da dignidade da pessoa humana.

Ao destacar os dois discursos de paraninfo neste tempo da memória, refaço apenas um simples traço na trajetória exuberante de ensinamentos de dois advogados e professores que, pelo exemplo de vida, demarcaram a riqueza da existência humana.

Para os mestres Vieira Netto e Lamartine, a homenagem nas palavras do poeta-imortal, Garcia Lorca:

           “Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,

           un andaluz tan claro, tan rico de aventura.

           Yo canto su elegancia com palabras que gimen

           y recuerdo una brisa triste por los olivos”.              

Curitiba, primeiro de maio de 2011.

Referências:

VIEIRA NETTO, J.R. – Sôbre as Quatro Liberdades – Curitiba, Edição do Autor, 1964.

OLIVEIRA LYRA, José Lamartine Corrêa de – A Véspera dos Bárbaros – Curitiba, edição do Centro Acadêmico Hugo Simas, 1968.

BOBBIO, Norberto – O Tempo da Memória – tradução Daniela Versiani – Editora Campus Ltda., 1997.

PASSOS, Edésio – Os Sonhos e as Utopias – Centro de Documentação e Informação, C&acir,c;mara dos Deputados, 1994.

PASSOS, Edésio – Saramago: da Justiça à Democracia, Passando pelos Sinos – Caderno Direito e Justiça, jornal O Estado do Paraná, 24.03.2002.

PASOLINI, Pier Paolo – Os jovens infelizes: Antologia de Ensaios Corsários – tradução de Michel Lahud e Maria Betânia Amoroso –  Editora Brasiliense, 1990

DINES, Alberto (coordenador) – Os Idos de Março e a Queda em Abril – José Álvaro Editor, 1964.

APUFPR – SSind – 50 Anos de História – Fascículo 05 – Setembro, 2010.

VIRMOND, Eduardo Rocha – Trem das Onze – Caderno Direito e Justiça, jornal O Estado do Paraná,18.01.2010.

DOTTI, René – Aviventando os rumos da saudade – Dotti & Advogados Associados – site – 19.10.2006.

KAVÁFIS, Konstantínos – Poemas – tradução de José Paulo Paes – Jose Olympio, 2006.  

REALE JUNIOR, Miguel – Considerações sobre ‘À Espera dos Bárbaros’, de J.M.Coetzee – www.malestarnacultura.ufrgs.br, 2010.

NAÇÕES UNIDAS – Declaração Universal dos Direitos Humanos – Brasil Direitos Humanos, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008.

GARCIA LORCA, Federico – Alma ausenteObra Poética Completa – Editora Universidade de Brasília, 1989.

NERUDA, Pablo – Hacia la cuidad espléndida – Discurso, Prêmio Nobel de Literatura – site:nobelprize.org. – abril, 2011.

Edésio Passos 

é advogado,

ex-deputado federal(PT/PR),

diretor administrativo da Itaipu Binacional.

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