O debate público sobre o alcance da Lei da Anistia (2)

“O juiz espanhol Baltasar Garzón ficou mundialmente conhecido em 1998 ao ordenar a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet por crimes contra a humanidade. Foi a mais notória decisão do magistrado que construiu uma carreira baseada no combate à impunidade dos torturadores de cidadãos da Espanha na América Latina, em especial no Chile e na Argentina.

A pressão externa de Garzón engrossou o caldo de cultura que permitiu a esses dois vizinhos do Brasil levar aos tribunais militares acusados de tortura e assassinatos durante as respectivas ditaduras”. Esta a introdução à entrevista concedida pelo magistrado espanhol ao jornalista Daniel Pinheiro, da Carta Capital.

Garzón esteve no Brasil participando do seminário Direito à Memória e à Verdade, realizado em São Paulo no dia 18 de agosto, sob patrocínio da revista Carta Capital e da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo federal, além de ter sido recebido no Congresso Nacional e pronunciado palestra na Universidade de Brasília. Eis a entrevista publicada na revista:

CartaCapital: O Brasil, ao contrário de vizinhos próximos, ainda não abriu os arquivos do regime militar nem levou a julgamento acusados de tortura. O que o senhor pensa a respeito?

Baltasar Garzón: Eu creio que a história é recorrente. Quando não são tomadas as decisões necessárias, apoiadas na verdade, na memória, para se estabelecer o que realmente aconteceu no passado, o país tem um problema a resolver.

Entendo que o mais acertado, o mais humano, o mais positivo, é que esses arquivos sejam abertos e os culpados responsabilizados, e não se tomar a atitude de “nada acontece, porque é assim mesmo”. Há países que demoram muito para fazer isso, como a Espanha, que levou 70 anos, mas que mesmo assim conseguiu resolver alguns casos e determinar responsabilidades.

CC: O principal argumento dos que são contra a abertura dos arquivos e a abertura de ações judiciais é que isso causaria instabilidade política…

BG: Sempre, em todos estes casos, quando chegamos ao ponto em que é pedida a abertura (dos arquivos), há esta polêmica, que considera que ela só pode ser feita se houver um ataque ao sistema. Mas muitas pessoas, e eu me incluo entre elas, conseguem mostrar que isso não é verdade, que a abertura não tem nada a ver com o risco ao sistema político, e sim com a aplicação prática da Justiça, com a recuperação da memória. Não se pode fechar definitivamente a porta em relação aos atos cometidos durante a ditadura, cuja impunidade é um caso de muita gravidade. É preciso que cada país encontre a sua maneira de fazer justiça, e eu acho que isso pode perfeitamente acontecer no Brasil.

CC: Em que medidas as leis de anistia em países como Argentina, Chile e Brasil não se contrapõem à legislação internacional sobre crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados?

BG: A existência dessas leis locais de anistia, que concedem perdão aos acusados, não foi um obstáculo para a Justiça espanhola em relação aos casos chileno e argentino, porque, se o fato aconteceu fora do país em que a investigação é realizada, é aplicado o princípio da justiça penal universal. Ele estabelece que crimes cometidos contra a humanidade são imprescritíveis. A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu uma sentença muito importante no caso Barrios Altos (chacina que matou quinze pessoas em Lima, no Peru, em 1991, cometida por paramilitares ligados às Forças Armadas), pelo qual Alberto Fujimori (presidente do Peru à época) está sendo investigado. Ela determinou a abolição da lei de anistia do Peru, que impedia até então a investigação.

Portanto, está claro que uma lei de anistia não pode impedir a investigação de crimes de lesa-humanidade.

CC: Embora tardia, a discussão sobre o julgamento de torturadores no Brasil começa a tomar corpo. Quais devem ser os próximos passos desse movimento aqui?

BG: Eu não conheço a realidade brasileira, nem alguma eventual comissão que pretenda resgatar a memória histórica desse período, sobre todos os atos cometidos pelo regime, como o desaparecimento de pessoas. Mas digo que é necessário procurar saber se há jurisprudência, se há uma atuação uniforme dos promotores e juízes em relação aos casos existentes. Só assim é possível saber se o País está em um momento de debate sobre todos os casos do período, e é necessário alcançar este momento. Sobretudo, para fortalecer a democracia, porque o fato de não ter havido apuração dos crimes até agora não significa que eles devem ficar impunes. Somente assim acontecerá a recuperação da memória e da Justiça.

CC: Por que foi conseguido sucesso nesse sentido na Argentina, no Chile, no Uruguai e não no Brasil?

BG: Não tenho conhecimentos concretos sobre o caso do Brasil, e que iniciativas foram tomadas. Porém, nos casos da Argentina e do Chile, tenho uma relação direta, porque fui o responsável pelas ações internacionais direto da Espanha. Elas começaram em 1996, e o ponto alto foi a detenção de Augusto Pinochet, que serviu para ativar todos os mecanismos de Justiça internacional e nacional e para finalmente poder julgar aqueles que cometeram crimes, tanto no Chile como, sobretudo, na Argentina. Esta é a única maneira de fechar as feridas causadas pelo passado mal-resolvido.

CC: Esses crimes são realmente considerados imprescritíveis? Os Estados sul-americanos têm a obrigação de punir os responsáveis por esses crimes?

BG: Sabe-se que em países como Chile e Argentina já se estabeleceu que sim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também disse que sim, do meu ponto de vista, também. O Chile foi o primeiro caso em que a prescrição existia no sistema penal, mas sempre há de se levar em conta que são crimes internacionais, por serem de lesa-humanidade. Portanto, conforme prevê o direito consuetudinário internacional, é obrigatório que este tipo de crime seja combatido e investigado, mesmo que tenha transcorrido um certo tempo, que seria suficiente para caracterizar a prescrição nas leis locais de cada país.

CC: Em caso de omissão estatal, como isso pode ser revisto em cortes internacionais? O Brasil pode receber punições por não levar à Justiça os torturadores e militares em geral envolvidos nesses crimes?

BG: Este é um assunto bastante complicado. É preciso observar se, passado o período da ditadura, as leis que possibilitaram a instituição da democracia permitem barrar as investigações de atos do regime anterior. Creio ser necessária uma interpretação conjunta com as normas internacionais, quando se trata de crimes contra a humanidade, o que permitiria investigar os atos passados da ditadura, não tanto em relação à omissão e, sim, em relação às conseqüências que esses atos tiveram.

CC: Se os crimes cometidos pela ditadura brasileira são contra a humanidade, por que esses delitos não foram tratados assim no País até agora?

BG: Seria necessário ver as decisões que a Justiça brasileira tomou em relação a isso, e eu desconheço qualquer tipo sobre a qualificação desses crimes (cometidos pela ditadura) como de lesa-humanidade. Em todo caso, aqueles crimes que foram cometidos sistematicamente a partir das estruturas de poder, ou por organizações amparadas por essas estruturas, contra determinados setores da população, em razão de suas crenças e idéias políticas, são considerados crimes contra a humanidade. Então seria necessário estudar e entender o caso do Brasil e, a partir desse ponto, decidir pela adoção da doutrina que prevê os crimes de lesa-humanidade nos tribunais brasileiros.

CC: Há informações de que o senhor teria dito a autoridades brasileiras que pretende investigar crimes da ditadura aqui no Brasil. O senhor confirma essa informação? Pretende mesmo investigar crimes no Brasil?

BG: Não, não há nenhum procedimento aberto na Espanha sobre crimes brasileiros, os procedimentos que estavam abertos se referiam ao caso chileno, em que havia vítimas brasileiras, e era isso que estava sendo investigado, não os crimes que foram cometidos no Brasil. Repito que não há nenhum procedimento aberto na Espanha e nem houve a intenção em nenhum momento.

CC: Há um caso específico de um cidadão espanhol, Miguel Sabat Nuet, preso no Brasil pelo DOI-Codi em 1973 e que até hoje consta como desaparecido. Um mês e meio depois ele morreu numa cela, segundo denúncias. O Ministério Público do Brasil investiga no momento a morte de Nuet. O senhor está acompanhando esse caso? O governo e a Justiça espanhóis estão fazendo alguma coisa? Qual medida pode ser tomada por parte da Espanha?

BG: Desconheço a existência deste caso e não sei se ele está seguindo os trâmites diplomáticos, mas a mim não me consta tenha sido iniciado algum tipo de ação internacional, e se houvesse, teria de ser tomada por algum organismo internacional. Em todo caso, como está sendo investigado pela Justiça brasileira, seria necessário esperar o resultado deste processo de investigação. Se for uma desaparição forçada, entra no rol dos crimes internacionais contra a humanidade, não há prescrição, é um delito permanente, e que precisa ser investigado. Se não fosse investigado no Brasil, teria que se investigar na Espanha.

CC: A Justiça da Espanha pode responsabilizar o governo brasileiro pela morte do cidadão Miguel Nuet? O senhor mesmo poderia encaminhar ação nesse sentido?

BG: Eu creio que temos que esperar o que decide a Justiça Brasileira, já que você me disse que o caso está sendo investigado aí. É preciso que a investigação seja concluída, seria leviano e temerário que qualquer autoridade fale em culpabilidade antes do fim do processo.

CC: Na Espanha, chegou-se à conclusão que juízes do país poderiam investigar casos de abusos mesmo se o cidadão vitimado não for espanhol, por tratar-se de crime contra a humanidade. O que o senhor achou da decisão?

BG: Na Espanha existe o principio de justiça penal universal e a lei do poder judicial, de 1985, se aplicou nos casos argentinos, e em outros casos que ainda tramitam na Espanha, como o caso de Salomón e o caso de Sahara, o Tribunal Constitucional Espanhol, em uma sentença de setembro de 2005, reiterada por outras sentenças, estabeleceu que o princípio de justiça penal universal permite que a investigação seja feita quando se trata de crimes de lesa-humanidade, mesmo que a vítima não seja espanhola, o que seria uma espécie de cláusula conta a impunidade. Partindo deste princípio, de que a aplicação correta é prevista pelo Tribunal Constitucional, assim é que aplicamos nos casos em que investigamos.

Gabriel Cavallo

O ex-juiz argentino Gabriel Cavallo foi responsável por decisões pela inconstitucionalidade das leis Obediência Devida e Ponto Final e aos indultos concedidos aos militares. Também concedeu entrevista à Carta Capital, da qual extraímos alguns tópicos:

CartaCapital: A exemplo do Brasil, a Argentina tinha leis e indultos que não permitiam o julgamento de crimes praticados por militares e altos funcionários da ditadura argentina. Como foi o processo que derrubou essas garantias e permitiu a detenção de centenas de acusados por assassinatos, torturas e seqüestros durante a chamada “guerra suja”?

Gabriel Cavallo: Tudo começou no governo de Raul Alfonsín, quando acontecem os primeiros julgamentos dos crimes cometidos pelos militares da Junta. Porém, a promulgação das leis Obediência Devida e Ponto Final paralisa o processo.

Posteriormente, o presidente Carlos Menem completa o marco de impunidade com a concessão de indultos aos comandantes condenados. Da canetada de Menem ao momento do decreto que torna essas leis inconstitucionais passam-se 12 anos. Durante esse período houve grande pressão de governos estrangeiros, principalmente europeus, para que os autores desses delitos fossem julgados.

Toda vez que um presidente argentino viajava ao exterior enfrentava manifestações de ativistas e organismos de defesa dos direitos humanos pedindo a abertura de processos contra os torturadores. Isso provocava um problema político internacional imenso para o governo. Ao mesmo tempo, havia uma série de mandatos de prisão expedidos por cortes internacionais contra militares do Cone Sul, como o caso clássico da prisão do Pinochet na Inglaterra. Havia então um ambiente favorável para a derrubada dessas leis.

CC: Qual o argumento jurídico utilizada pelo senhor para torná-las inconstitucionais?

GC: Acompanhei as sentenças judiciais expedidas pelos juízes europeus. Essas decisões eram baseadas na legislação internacional para crimes contra a humanidade e direitos humanos. Esse tipo de doutrina se aplica, por exemplo, aos criminosos nazistas da Segunda Guerra Mundial. Realizei um estudo de tudo que estava se passando no direito internacional e comecei a projetar como isso poderia ser adaptado na Argentina. Fiz isso em 2001. Quatro anos depois a Suprema Corte ratificou meu despacho e permitiu a reabertura desses processos.

CC: No Brasil há uma discussão sobre a abertura de processos contra os acusados de prática de crimes durante a ditadura. O ministro da Justiça, Tarso Genro, defende que os delitos cometidos durante o período sejam julgados como crimes comuns. Como o senhor analisa essa proposta?

GC: Na minha avaliação é um erro. Se você julga um crime contra a humanidade como crime comum você permite ao acusado todas as prerrogativas de defesa garantidas por lei para esse tipo de delito. A primeira coisa que irá se alegar é que muitos desses crimes já prescreveram. Um crime previsto pelo direito internacional, por exemplo, nunca prescreve. Por isso até hoje se persegue os criminosos nazistas pelo mundo. Outro fato importante é que os condenados nessa categoria não têm direito a indulto, anistia, nada. O que não aconteceria no caso de um julgamento comum. Por isso é importante que esses julgamentos sejam regidos pelas leis do direito internacional.

CC: O senhor tem acompanhado os debates sobre a possível mudança da Lei da Anistia no Brasil?

GC: Acompanho esporadicamente. Estou informado que há movimentos nesse sentido. Mas é sempre uma questão delicada, complexa, que demanda tempo e habilidade para ser discutida. Aqui na América do Sul tivemos grandes progressos no Chile, que viveu uma situação muito parecida com a da Argentina. Mas esse tema não avançou no Uruguai. Lá foi realizado um plebiscito para referendar a lei que anistiava os militares suspeitos de crimes durante o regime militar. O povo uruguaio achou por bem não levar adiante essa questão. É uma decisão soberana. Eu particularmente acredito que nenhum país deveria deixar impunes seus criminosos. Mas respeito outros pensamentos.

Edésio Passos é advogado e ex-deputado federal (PT/PR). edesiopassos@terra.com.br