Sacerdotes da dor

Muitas vezes, nas noites vazias, quando sono teima em não vir, fruto do último noticiário da noite, onde fica impregnado na memória, ônibus incendiados e policiais mortos, em mais um ataque covarde da marginalidade, me pergunto: Por que alguém quer ser policial? Creio que já tenha visto quase tudo em minha vida, porém a natureza humana é sublime e, sempre me surpreendo com algo novo, o que diria no universo policial. Ninguém está interessado em dar conselhos a uma família com problemas, a um pai aflito, com seu filho perdido nas drogas, às três da madrugada de um domingo, ou mesmo ajudar a desentranhar corpos, emperrados na burocracia de órgãos que funcionam em horário comercial. Entrar às escuras, num edifício abandonado, onde assaltantes acabaram de se esconder, marginais dispostos a qualquer coisa, inclusive matar, ou em presenciar, dia após dia, a pobreza, da carne e do espírito, os desequilíbrios mentais, de uma sociedade adoecida nos princípios morais e éticos, as tragédias humanas, enfim, surge ai outro questionamento. O que faz um policial suportar o desrespeito, as restrições legais, as longas horas de serviço com baixo salário, o risco de ser assassinado, ferido ou mesmo preso, já que neste universo o certo muitas vezes é duvidoso, sem que se tenha a mínima chance de defesa, do escárnio público, promovidos pela inquisição da mídia?

Todo o agente da polícia compreende sua aptidão para fazer cumprir a lei, com a autoridade que ele representa, e que ele é o elo importante entre a civilização e o submundo dos fora-da-lei, mereça que se façam quaisquer sacrifícios, porém a insatisfação do não reconhecimento, dos baixos vencimentos, da sobrecarga emocional, do desrespeito, do perigo, dos aborrecimentos e da apatia legal, deterioram conceitos, contaminam a moral e a ética, subvertem a ordem e destroem o policial, que com muita sorte, ao final de seus longos anos de convívio com a insanidade do caos, consegue ir para casa são e salvo, já que na maioria das vezes muitos se tornam alcoólatras, dependentes químicos, com algum tipo de demência ou simplesmente estouram seus miolos, aqui abro um saudoso parentes a memória do amigo Aurem, mais conhecido como Paraguai, um bom policial civil: ?na nossa mesa falta o pão… o crime está vencendo?.

Mais um ano nasce, e com ele um novo governo, seja no plano federal ou estadual, nem que em alguns seja a repetição do passado. Discursos antes inflamados, agora tem tons moderados e prolixos diante de receitas anêmicas, herança maldita, de orçamentos corroídos por sangue sugas, mensalões, anões do orçamento ou obras faraônicas, construídas a um custo absurdo, mas o que poderia ser considerado crime naufragou na ineficiência burocrática do antagonismo entre o certo e o duvidoso; o moral e ético pelo abismo das lacunas ou contraditoriedades legais, dando aos parasitas da máquina pública o prêmio do perdão legal, uma espécie de sepultamento dos sonhos e esperanças dos justos.

O exemplo é o que move a humanidade. A criança aprende a falar, a andar e tomar atitudes movidos pela repetição dos gestos dos adultos, como não considerar que nos espelhemos nas atitudes tomadas por aqueles que têm a obrigação de nos servir de esteio.

Perante o caos que vivemos, creio serem urgentes a implantação de algumas medidas. Aprovar e colocar em prática a Lei Orgânica das polícias, que tramita no Congresso Nacional há aproximadamente dez anos; agilizar o Plano de Cargos e Salários dos policiais, e abrir concursos, não para cem, mas para três, quatro mil… Homens. Investir no aprimoramento moral e ético, se faz urgente, porém de pouca valia, já que boa parte dos policiais, pelos parcos vencimentos, não encontram outro lugar para morar se não nas favelas, sobre a égide do tráfico e neste caso ocorrem duas possibilidades, ou se aliam a ele ou são massacrados por ele. Agora surge, pela inércia do Estado, a terceira via, os policiais se unem e se transformam em milícias, que no final acabam se igualando aos marginais. Tratar as polícias de forma homogênea, também ajuda, já que às vezes parece que somente uma tem direito ao legado dos justos, a outra é o bastardo em busca das migalhas perdidas.

Também seria interessante repensar o Lei de Execuções, que desfigura sentenças condenatórias, sobre o auspício da progressão de regime ou dos indultos. O encrudecimento legal seja com receptadores ou usuários de drogas, por uma questão básica, se não houver para quem vender, não há porque cometer o crime. Vislumbrando que ninguém neste País fica preso por mais de trinta anos, é incongruente que penas somadas sejam superiores a cem, duzentos anos, sendo assim a perpetuidade não é tão ruim. E lógico, reavaliar a Transação Penal, que muito tem contribuído para enfraquecer a força do Estado perante a sociedade, já que bastam algumas cestas básicas ou meras prestações de serviço, em substituição às penas, sem cunho doutrinário algum, paliativo das enfermidades que levam a crimes maiores e mais graves, que levarão, mais cedo ou mais tarde, o indivíduo marginal, à custódia dos minúsculos, superlotados e fétidos ?depósitos dos dejetos sociais?. Fazer com que custodiados trabalhem em serviços pesados é uma excelente medida, já que presos exaustos terão pouca vontade de se amotinarem ou mesmo idealizarem fugas. São estas algumas medidas que podem trilhar o caminho da paz futura, mas elas de nada valerão a pena se os homens que se revestem do poder maquiarem uma realidade legal para o povo e outra para eles, numa espécie de manto da impunidade e barbaria.

O que faz alguém se transformar em policial é sem sombra de dúvidas o ideal. Ideal de uma sociedade melhor; ideal de respeito da sociedade e da instituição, seja por ele ou pelo que ele representa; ideal de um mundo mais justo e igualitário; com segurança financeira e saúde para esposas e filhos, e no final dos longos anos de batalha, na árdua arte de servir e proteger, sentir-se indo para casa, com a certeza indelével no coração e na alma, do dever cumprido.

Adolfo Rosevics Filho é membro da Academia de Cultura de Curitiba e Academia Sulbrasileira de Letra Subseção Paraná.

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