Leituras de começo e fim

Leitores cultuam os livros de maneiras diferentes. Há os que acariciam as capas, os que cheiram as folhas, os que sopesam os volumes, os que lêem sentados, os que degustam deitados, os que encadernam para várias gerações, os que etiquetam, escovam, distribuem simetricamente, dispõem por cores ou tamanhos. Reservam, preservam. Tratam como fetiche.

Leitores heréticos escrevem e rabiscam as páginas, rasgam e amassam as capas, trocam por gibis, jogam no lixo ou no fundo dos armários, escondem em sótãos e porões, esquecem. Desamam. Tratam como quinquilharia.

Leitores há que escolhem textos em razão das ilustrações, da quantidade de páginas, do colorido da capa, por causa do título ou do autor. Alguns poucos lêem as orelhas, as informações da última capa, o sumário. Outros lêem as primeiras páginas. Alguns mais raros decidem-se a ler o volume, movidos pelas últimas páginas. Ouvi de uma professora, a quem dei todo crédito: ?Escolho o livro pelo final!? Depois de mais essa aprendizagem, passei a prestar atenção ao final dos livros de que gosto. Fui redescobrindo a razão de meu apreço por eles, e a explicação para a sensação de completude somada ao desejo de um dia voltar a suas páginas.

Li há alguns anos o maravilhoso Se um viajante em uma noite de inverno, de Ítalo Calvino, texto que, além de expor teorias sobre a leitura, converte o leitor em personagem, que se defronta com dez diferentes inícios de romances, sem continuidade nem fim.

Essa combinação de palavras iniciais e de momentos finais de leitura norteia este canto de página semanal. Convido, portanto, o leitor a me acompanhar na aventura de começar e finalizar narrativas, recheando com a fantasia e a memória de outros textos a diversidade da produção ficcional de escritores representativos de nossa herança cultural.

?Na época em que começa esta história, a impressora de Stanhope e os rolos de distribuição de tinta não funcionavam ainda nas pequenas tipografias de província. Não obstante a especialidade que a põe me relação com a tipografia parisiense, Angoulême ainda se servia de prensas de madeira, às quais a língua deve a expressão ?fazer gemer os prelos?, atualmente sem aplicação. Assim começa o romance Ilusões perdidas, de Balzac.

?Encontraria a Maga? (…) era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta dentifrícia?. É Júlio Cortazar convidando para brincarmos com ele O jogo da amarelinha.

?Adeus, minha cara e digna amiga. Vejo em tudo isso os maus castigados; mas não encontro consolo algum para suas desgraçadas vítimas?, declara a Senhora de Volanges a sua amiga Rosemonde, para complementar numa última carta: ?sinto, neste momento, que nossa razão, já insuficiente para prevenir nossas desgraças, o é ainda mais para nos consolar?, fechando a obra-prima de Laclos, Relações perigosas.

Que tal entrarmos com o narrador num espaço que conhecemos de sobra? ?Estávamos em aula, quando o diretor entrou acompanhado de um novato, vestido como uma camponês e de um servente que trazia uma grande carteira. Os que dormiam acordaram e todos se ergueram, assim como que surpreendidos nos trabalhos?. Quem chega ao leitor é Charles, o marido de Madame Bovary, de Flaubert.

Do outro lado do Atlântico, responde Eduardo Galeano: ?Já não haverá devoradores de homens…Ao terminar a cobiça, vai se desamarrar a cara, vão se desamarrar as mãos, vão se desamarrar os pés do mundo?. Que sonho utópico maravilhoso se as palavras finais de O profeta, texto que encerra As caras e as máscaras pudessem se realizar…

?Podes crer-me, desocupado leitor e não preciso jurar que eu quisera fosse este livro, como filho que é do entendimento, o mais formoso, galhardo e discreto que se pudera imaginar?. Lê-se aí o desejo de todo escritor, e que Cervantes conseguiu realizar em D.Quixote, apesar desse início de retórica humildade.

?No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30 da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de grandes figueiras onde caía uma chuva branda,e por um instante foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se completamente salpicado de cagada de pássaros?. Um início que já contém seu final, integra a Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Marques.

Uma outra morte, igualmente anunciada, se desenha em palavras de convite à reflexão: ?Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor??, escreveu Thomas Mann, no último diálogo do narrador com Hans Castorp, ?o cândido filho da vida? em A montanha mágica.

Esta pergunta quem responde com ironia é o cínico Brás Cubas, de Machado de Assis, em sua última punhalada no leitor: ?Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria?.

Para que esta crônica, a um passo do fim, não seja concluída funebremente, nunca é demais rever as palavras derradeiras de profundo humanismo de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: veredas: ?Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que o diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia?. 

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