Faces de uma leitura de qualidade II

Liberto das injunções de trabalhos, provas e análises de texto da graduação, o jovem professor tende a diminuir o ritmo e a quantidade de leituras, além de poder se deliciar com os produtos do mercado editorial que, voltados ao consumo, estão longe de caracterizar uma leitura significativa em termos estéticos. Com todos os ônus das escolhas individualizadas, geralmente estimuladas pelo ?jogo de empurra? das editoras, ou pela lista dos mais vendidos.

Também contribuem para a situação de pouca leitura as apostilas, material que alicerça boa parte do trabalho docente, que procuram adequar as informações e textos a uma realidade mais próxima do aluno, geralmente facilitando a transmissão do conhecimento e limitando mais ainda a leitura dos autores que constituem o cânone literário.

A fragmentação dos textos literários, comum às apostilas e aos livros didáticos, induz os estudantes a tomarem a parte como um todo e surpreenderem-se, quando conseguem ler o todo, com a diferença, as nuanças e a complexidade que o fragmento não pudera apresentar. Na fragmentação, dá-se a inversão da mobilidade e da natureza plural e abrangente da literatura.

A simplificação da apostila, quando os alunos se restringem a ela, induz ao conceito equivocado da obra literária existindo a partir de um conjunto de especificidades, quando o que ocorre é o movimento inverso. A habitual lista de características de período ou a apresentação pela biografia do autor emolduram e direcionam a interpretação do texto literário. Além disso, somente os autores medíocres seguem obedientemente o receituário de um determinado período literário.   

Em pesquisa realizada com 742 estudantes do Ensino Médio, num projeto PIBIC com Maria Christiane Secheto, 87,97% dos entrevistados dizem gostar de ler textos literários, e 40,02% justificam essa predileção porque a leitura transmite conhecimentos. Seguem-se outras qualidades para justificar esse gosto: a função cultural (7,27%), a lúdica (7,14%), a comportamental (6,33%) e, por fim, a filosófica com apenas 4,71% das respostas.

Adquirir conhecimento, portanto, parece ser a preocupação fundamental dos alunos ao se aproximarem de um texto. Obtivemos respostas como ?gosto de ler para aumentar conhecimento?, ?para ficar informado? – ou mais objetivamente: ?porque enriquece o vocabulário?, ?para escrever melhor? ou, ainda, ?porque é uma maneira de aprender?. Evidencia-se que a leitura, para esse conjunto de alunos, é vista como um meio de obter sucesso na vida escolar.

Sabemos que a literatura influencia a escrita desde que o leitor seja proficiente, isto é, perceba com clareza os recursos discursivos utilizados pelo poeta, ficcionista ou dramaturgo a fim de obter a adesão do leitor e causar os mais diferentes efeitos.

A interdependência entre escritor e leitor tem, a nosso ver, duas faces. A primeira, mais comum, é a que liga inevitavelmente autor e leitor por intermédio da obra literária ou do texto. O leitor, em contato direto e permanente com formas de escrita, aprende que ela não é uma criação pessoal, mas uma herança cultural, fruto de infinitas e indetermináveis leituras. Por isso, um escritor tem que ser necessariamente um leitor. Na sociedade multimídia em que estamos inseridos, quanto maior o número e variedade dos textos – não apenas verbais – a que estiver exposto, mais o escritor, profissional ou não, disporá de recursos eficazes de expressão.

A segunda face dessa interdependência diz respeito aos graus e intensidades diferentes que a relação autor-texto-leitor supõe, e que variam de acordo com cada ângulo abordado. Sabemos também que a maneira como a escola os trata, além de forçada e obrigatória, em nada enriquece um ou outro.

Há leitores adolescentes que vêem a leitura como ludismo e prazer. Alguns reconhecem nela uma ?forma de entrar num mundo de sonho, viajar?, outros uma ?forma de relaxar? , outros, ainda, uma maneira de esquecer dos problemas e de se evadir: ?é uma forma de fuga?.

Embora haja leitores que acreditam na leitura prazerosa, o que lhes permite viver virtualmente as situações ficcionais, convém levar em conta que se trata de um percentual muito reduzido. O texto literário incentiva o imaginário, o lúdico e o prazer; permite também a reflexão e o desenvolvimento da sensibilidade estética e do senso crítico. Não é exagero afirmar que se a escola insiste somente no conhecimento está, sob certos aspectos, eliminando qualquer possibilidade do aluno ver na literatura um sentido relevante e diverso daquele que pode ser encontrado nos livros didáticos, nas enciclopédias e nos textos informativos.

Em decorrência dessa situação, alguns alunos passam a ver o texto literário como ?um estorvo? ou ?um texto que não serve para nada?, pois ele não representa mais do que uma tarefa desmotivadora, que precisa ser enfrentada por quem quiser sair-se bem nas avaliações. Da mesma forma, ?os textos literários são inúteis? para aqueles que não aprenderam a apreciá-los convenientemente. Surgem então expressões do tipo ?ler literatura é perda de tempo, tenho coisas mais importantes para fazer? ou ?não serve para nada, prefiro ler livros técnicos?.

No que respeita à formação interior dos sujeitos-alunos, pode-se avaliar melhor a consciência que eles possuem de objetivos da leitura que ultrapassam o conhecimento e o jogo. Eis algumas razões expostas nessas respostas: por meio da leitura ?aprendo a ter interesse pelo mundo?, ?me faz refletir?, ?a literatura ajuda a amadurecer?, ?me ensina a lidar com as pessoas?, ?me ensina a opinar?, ?a adquirir senso crítico? e, até, ?melhora o astral?.

É possível perceber quão restrito e apequenado fica o trabalho do professor ao encarar a leitura como um exclusivo trampolim para a aprendizagem da língua. Se considerarmos o estágio de afirmação de identidade pelo qual passam os alunos do Ensino Médio, essas últimas respostas apontam a viabilidade e a intensa significação que a leitura literária pode ter na sua formação humana. E delatam o erro – quando menos o engano – em que persistem a escola e o professor ao desconhecer – ou fazer que desconhecem – os interesses e opiniões dos alunos. Esse desencontro leva a resultados desanimadores, que se verificam no trato com a leitura e a literatura na escola. Resultados que justificam, infelizmente, as estatísticas que consideram leitores ativos e críticos apenas 25% dos brasileiros. 

Voltar ao topo