As drogas são o mal do novo século

A dependência química, seja provocada por drogas ilícitas como a cocaína ou lícitas, como o álcool, não é um problema novo. Porém, hoje ela é considerada pelos especialistas no assunto como o mal do novo século. Mais do que isso, o que antes era considerado apenas uma opção, de trinta anos para cá já é encarado como uma doença séria, que precisa ser combatida com todas as armas, já que a interferência dos reflexos da dependência não atingem apenas a vida pessoal do viciado. Na vida profissional, a interferência da dependência causa transtornos que muitas vezes terminam em demissão. Porém, há outros caminhos para lidar com o problema.

Segundo o psiquiatra Fernando Sielski, especialista na área, a cultura das empresas vem mudando a passos lentos, mas aos poucos a filosofia de que nos casos de dependência é mais fácil demitir o funcionário vem sendo combatida. ?Antigamente, os patrões acreditavam que mandando um funcionário dependente embora, resolvia o caso. Mas o risco de contratar outro com o mesmo problema é grande?, explica. Para sustentar a teoria, ele apresenta números alarmantes. Segundo estudos do segmento da dependência química, só no que se refere ao consumo de álcool, droga socialmente aceita, 60% dos brasileiros se utilizam dela em alguma situação, mesmo que apenas em momentos de lazer. O grande problema é que pessoas predispostas a desenvolver o alcoolismo, seja por influência genética ou de fatores psíquicos, como a depressão, em contato com a droga, têm a grande probabilidade de se tornarem dependentes. ?O número de dependentes químicos no Brasil varia de 10% a 20%, o que torna comum as empresas terem em seu quadro algum funcionário dependente?, diz.

E basta um pouco de bom senso e poder de observação para detectar aqueles trabalhadores que possuem a dependência. ?Os indícios são claros. O primeiro é o absentismo, quando a pessoa começa a faltar ou se atrasar no trabalho.? Nesses casos, a maior incidência da ausência é registrada na segunda-feira, após um final de semana regado a bebidas ou outras drogas. ?O dependente tem mais tempo de contato com a droga e os reflexos vêm na segunda. Nesses casos, é muito comum que ele peça para algum familiar ligar para a empresa com alguma desculpa.?

Outro reflexo de um dependente é o envolvimento em acidentes de trabalho, especialmente nas fábricas, onde este risco é maior. ?Só entre os alcóolatras, o índice de acidentes de trabalho é três vezes maior?, diz Sielski. A queda de produção, desmotivação sem motivo aparente e irritabilidade completa a lista de indícios. ?Neses casos, o departamento pessoal, checando o número de faltas e atrasos pode ajudar a apontar os dependentes.?

Em algumas empresas, que possuem médico de trabalho e exames regulares, quando surge a suspeita, o funcionário é chamado para uma conversa e por meio de exames de sangue, pode-se detectar a dependência. Algumas drogas, como cocaína, maconha e crack são facilmente detectadas. O álcool também deixa indícios. ?A macrocitose (células inchadas), anemia, baixa de leucócitos e triglicerídeos altos comprovam o alcoolismo.?

80% dos dependentes estão desempregados

Foto: Ciciro Back/O Estado

João: ?Não há preocupação com o resgate. É mais prático simplesmente demitir?.

O problema da dependência na vida dos trabalhadores é tão devastador, que o coordenador dos Narcóticos Anônimos (NA) em Curitiba, João (nome fictício), não se intimida ao confirmar que boa parte dos adictos, terminologia usada para designar aqueles que lutam contra a escravidão da dependência, perderam o emprego. O número é alarmante. Nada menos que 80% dos dependentes químicos ficaram desempregados.

Segundo ele, o que se vai primeiro na vida de um dependente é o auto-controle. ?Aos poucos, ele vai perdendo o respeito, a família e chega à perda do emprego, não necessariamente nessa ordem?, afirma. Uma vez sem ocupação, a dependência tende a se agravar e a falta de dinheiro somada ao desespero do consumo da droga muitas vezes leva o dependente a cometer crimes. ?A pessoa acha que não tem mais nada perder e a ansiedade para consumir a droga é tanta, que vale qualquer coisa.?

No ciclo vicioso da dependência, ele lamenta o fato de muitos empregadores ainda terem preconceito em relação ao abuso das drogas, pensando que a dependência é mais questão de caráter do que de doença. ?No geral, não há muita preocupação com o resgate social. É mais prático simplesmente demitir o funcionário?, diz. Pior do que a demissão, é conseguir um novo emprego posteriormente, mesmo que a pessoa tenha sido submetida ao tratamento e esteja abstêmia. Por isso, a NA assegura o anonimato na associação. A pessoa que frequenta as reuniões não precisa usar o nome verdadeiro e não se expõe de modo algum. ?O objetivo direto é evitar o preconceito. Uma empresa de contabilidade, por exemplo, dificilmente contrata alguém que já teve problemas com drogas, com medo de que a pessoa passe a desfalcar as contas para conseguir a droga em uma eventual recaída?, cita João, como exemplo.

Palestras

Atuante desde 1989 no Brasil, a NA não limita o trabalho à recuperação de dependentes por meio de grupos de auto-ajuda. O trabalho preventivo tem muita força, já que por terem passado pelo pesadelo das drogas, os adictos sabem exatamente como alertar as pessoas do mal que a dependência causa. Mediante a solicitação das empresas, segundo ele geralmente daquelas que possuem um psicólogo, o grupo expõe painéis sobre o tema. ?Entre maio do ano passado até agora, foram 384 painéis, atingindo 14.786 pessoas?, diz orgulhoso. Porém, como o trabalho é gratuito, basta a empresa agendar, a NA ainda acha muito pequena a participação dos empregadores e se coloca à disposição para agendar novos trabalho de conscientização, importantes para manter os funcionários longe da dependência. ?Estamos dispostos a atender a todos. Basta entrar em contato conosco pelo telefone (41) 3329-0005?, finaliza João. O recado está dado.

Prevenção em primeiro lugar

Quando se fala em drogas, bater na tecla da prevenção tem uma justificativa plausível. O melhor é não entrar no mundo da dependência, porque é muito difícil sair dele posteriormente. O ex-dependente Renato (nome fictício) tem propriedade para falar no assunto, já que ficou ativo durante 25 anos – dos 13 aos 38. ?Nesse período, usei de tudo. Álcool, maconha, anfetamina, LSD. Eu simplesmente não vivia sem a droga?, confessa.

Durante todo o período como dependente, ele refletia o vício no trabalho, porém não foi mandado embora porque trabalhava em uma empresa pública.

No caso dele, foram necessários cinco, no prazo de dez anos, no qual ele era licenciado para tentar se livrar das drogas. O reflexo das drogas no trabalho era distração e falta de produtividade. ?Não perdi o emprego, mas não cresci profissionalmente.? Há dez anos abstêmio, ele comemora a retomada da vida profissional. Após sair da empresa em que trabalhava por iniciativa própria, ele abriu outra que comandou por oito anos, com muito sucesso.

Dependência tem que ser tratada como doença

Uma vez comprovada a dependência do funcionário, cada empresa tem um procedimento. Algumas nem chegam a reconhecer a doença e preferem mandar o funcionário embora, o que pode agravar o, problema da dependência. Desempregado, o dependente vê sua auto-estima despencar e com mais tempo livre, a droga pode ser o ?conforto? encontrado. ?Infelizmente, muitas empresas ainda não reconhecem a dependência como doença e simplesmente descartam o funcionário.?

Porém, nem todas empresas têm esse comportamento simplista. Em 1982, começaram a surgir dentro de algumas empresas no Brasil o trabalho não só de recuperação, como especialmente de prevenção ao problema. As precursoras foram a multinacional Esso e a Petrobras. Durante um período, Sielski trabalhou no programa ?Pare?, desenvolvido pela empresa brasileira. ?O programa de recuperação começou a funcionar em Araucária e São Mateus do Sul e se espalhou.?

A Renault do Brasil, em 2000, implantou o Programa de Prevenção e Reabilitação em Dependência Química no Complexo Ayrton Senna, em São José dos Pinhais, com o propósito claro de conscientizar e resgatar usuários de drogas do quadro de funcionários. Além de palestras sobre o tema, a empresa custeia integralmente o tratamento dos funcionários que apresentam a dependência, seja por terapia ou internamento.

Outro programa que tornou-se referência na área é o Viver mais natural, da empresa paranaense O Boticário. Segundo Janaína Santos Silva, coordenadora do projeto, o conhecimento do problema chega por três meios. ?Muitas vezes a indicação vem pelo pessoal da saúde ocupacional. Outras vezes, é o gestor que traz a suspeita, baseando-se em ausências, atrasos ou sonolência. Há ainda as que chegam a nós por pedido da família ou iniciativa própria.? Em todos os casos, é feita uma abordagem e a pessoa só passa ao tratamento se quiser.

Demissões não são por justa causa

Como os programas de reabilitação dentro das empresas ainda começam a se popularizar, é muito comum a ocorrência de demissões devido ao abuso de drogas, ilícitas ou não. Se o funcionário passa a não render o esperado, o departamento pessoal pode ser o caminho mais curto para o desemprego.

Segundo o advogado trabalhista Marco Antônio César Villlatore, o procedimento não costuma ser encarado como configuração de justa causa, a não ser em casos extremos, como no da pessoa ser flagrada sustentando o vício dento da empresa. ?O que configura a justa causa consta no artigo 482 da CLT (Código de Leis Trabalhistas), que permite interpretação diversa.?

Na prática, como o que leva à demissão são conseqüências da dependência.

Em alguns casos, o trabalhador pode até entrar com um processo posterior, se sentir que foi discriminado por ser uma pessoa doente.

O que comprova o atraso dos brasileiros no reconhecimento da dependência química como doença é o fato do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) também não reconhecer.

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