A viagem-travessia de Marina Colasanti

Quem tem amigos leitores, não morre sem livros. Os contadores de histórias do grupo Saberes me presentearam no Natal com a obra 23 histórias de um viajante, de Marina Colasanti, editado em 2005, pela Global. A leitura revelou-se um reencontro. Com alguns contos já publicados esparsamente. Com o universo mítico, registro maior de uma obra coerente e profunda. Com a linguagem poética, que borda imagens de sutileza e amorosidade em alguns contos, e que fere, desestabiliza e abre velhas feridas em outros.

Como uma outra Sheerazade, um viajante (o destino de olhos amarelos) envolve um rei num tecido de histórias, que se costuram ao tecido vivo do medo e do isolamento do rei, resultando numa tapeçaria iniciática, transformando a todas as personagens e a seus espaços interiores e exteriores.

Alternam-se, desse modo, uma grande narrativa-mãe, a do rei submergindo nas histórias do viajante-destino, e vinte e três contos, de diferentee teores e componentes narrativos. Caçadores, monges, lavadeiras, comerciantes, engenheiros, anões, vizires, saltimbancos, guerreiros, aristocratas, reis, ferreiros, soldados, alcoviteiras, animais personificados, enfim, um universo regido pela criatividade e pelo simbolismo.

São personagens que sonham, esperam, procuram, constróem, sofrem a injustiça, vivem a solidão, padecem o medo, propõem-se desafios, e vencem ou perdem. São guiados, sobretudo, pela maciça presença do sensível, do desconhecido, e, não poucas vezes, do inexplicável. Debatem-se entre o desejo e a descoberta, como o homem de "A cidade dos cinco ciprestes" e o herdeiro de nobre família do conto "Na sua justa medida". Mulheres vítimas de abandono ("De torre em torre") e de injustiça ("Quem me deu foi a manhã"), mulheres más ("O riso acima da porta") ou mágicas ("São os cabelos das mulheres"), homens que desafiam a morte ("Um homem, frente e verso") ou são por ela desafiados ("A Morte e o Rei"). Um mundo, enfim, em que nada é o que aparenta, porque aquilo que existe depende de um outro olhar, de saber escavar sob, de mergulhar em, de imergir. A poderosa narrativa de "A cidade dos cinco ciprestes" exemplifica bastante bem essa necessidade de descobrir a riqueza da vida em profundidades desconhecidas: "um baú cheio de moedas de outro dorme no escuro coração da terra, entrelaçado com cinco fundas raízes", diz o conto, ou, como explica o viajante, "não são os ciprestes que contam nossa história, mas a capacidade de reconhecer o lugar onde o tesouro se encontra".

Desse modo se pode avaliar as histórias do livro e reconhecer o quanto esse tesouro literário se relaciona com as raízes profundas de narrativas imemoriais que a humanidade criou e que, até hoje, servem de fonte e alimento para novos e frondosos ciprestes, sinalizando cidades nascidas de sonho, mas construídas em páginas reais.

Marina Colasanti escreve e ilustra o livro, trazendo às palavras o acréscimo de imagens-miniatura a compor um livro instigante, cuja leitura, virada a última página, adere ao pensamento e fica. Ou melhor, finca raízes de idéias e sensações que frutificam.

Para ilustrar melhor a força dessas narrativas, colhi frases de diferentes momentos do livro, colando-as em uma nova história. Sem o brilho das demais, no entanto, reproduzo o resultado com a intenção de homenagear a força da escrita de Marina Colasanti, o valor do presente recebido dos contadores do Saberes e a trança sem fim das histórias.

"Dois rios se cruzam em uma terra distante, exatamente como se cruzariam duas ruas de uma cidade. As terras do príncipe eram belas e vastas. E então, numa dessas manhãs, o destino parou diante da muralha de uma edificação nobre e grandiosa. Tem quatro torres largas e muitas paredes grossas o castelo do rico monarca.

Eis que uma tarde, o nobre Senhor daquela comarca regressava ao castelo após uma caçada quando, sobre uma ponte, seu cavalo assustado pelo atravessar de um esquilo empinou-se, derrubando-o. Tentou levantar-se. Porém o corpo não lhe obedecia, não lhe obedeciam os músculos. Inutilmente insistiu no desejo de mover-se, como uma ordem. Nenhuma resposta lhe veio. Os ossos pareciam alheios, se é que havia ossos. Uma rigidez fria e compacta fundia carne e sangue. Imóvel, perguntou-se em que caixa, em que casca. Em que pele estava trancado. E voltando-se viu, debruçada no alto de uma sacada, uma jovem que agitava o braço, uma jovem envolta em sol, cuja trança pendia tentadora. A seu lado, ajoelhada a mulher enfaixa a mão num pano branco, logo manchado, lava a ferida com chás de ervas, tenta curá-la com emplastros de pão e teias de aranha. Mas nada aproxima um lado do talho ao outro lado. A ferida continua aberta e sangra.

Noite, ainda não. Mas as nuvens tão escuras, que era como se fosse. E nesse escuro pesado, envolta num manto, a Morte galopava seu cavalo negro em direção ao castelo. Os cascos incandescentes incendiavam a grama. Desfaziam-se as pedras em centelhas. Definhou, definhou. Forças para levantar-se não teve mais.

Antes que fechasse os olhos, acercaram-se dele seus capitães. Retiraram o elmo. O sangue escorria da cabeça. O rei ofegava, parecia murmurar algo.

– Deixe-me olhar o mundo.

 Haveria ainda uma última manhã e uma última história para levar na lembrança até a fronteira. O destino de olhos amarelos acabava a travessia das terras do jovem senhor. Então os pesados batentes foram apartados de par em par, como se uma passagem se desobstruísse na montanha.?

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