Moral e Imoral pelo Amoral

O que é moral mesmo alijado de qualquer conteúdo valorativo tem sido invocado para preencher lacunas deixadas pela própria perda de sentido do que é moral ou é imoral, por uma discursividade instrumental que tão-somente tem produzido argumentos complexos para legitimar a irracionalidade conformativa sustentada pela racionalidade (pós)moderna construída por setores sociais em particular, político-econômicos enquanto estratégia mutante e sofisticada de controle social. Desta forma, as referências do que é moral tanto quanto o que é imoral não estão sendo utilizadas para a melhoria da qualidade de vida comunitária. Isto é, no Brasil, não têm sido utilizadas para a emancipação subjetiva da pessoa, apesar da dignidade da pessoa humana configurar-se num dos princípios fundamentais objetivados na Constituição da República de 1988(1). A dignidade da pessoa humana é uma exigência ética séria, segundo Boaventura de Sousa Santos, para quem uma concepção multicultural dos direitos humanos se impõe, vale dizer, os direitos humanos devem ser transformados através da hermenêutica diatópica ?em uma política cosmopolita que ligue em rede línguas diferentes de emancipação pessoal e social e as torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis.?(2)

A discussão que hoje se trava acerca da fundamentação e das teorias éticas do discurso tem gerado importantes conseqüências na própria fundamentação do moral, segundo Marina Velasco, a qual conclui que não se pode fundamentar um dever moral de um modo a priori(3). Por exemplo, a dignidade da pessoa humana enquanto princípio fundamental do Estado brasileiro que se pretende Democrático (Constitucional(4)) e de Direito deve ser algo substantivo e, assim, provado através de argumentos apoiados em premissas factuais e não meramente baseado numa simples dedução argumentativa. Isto é, na perspectiva pragmático-transcendental uma premissa para que seja aceita por qualquer um que queira questionar um princípio deve possuir o ponto de partida factual, porém irrecusável, pois somente assim torna-se autoverificável. No entanto, de acordo com Marina Velasco(5) isto não significa a fundamentação transcendental de princípios morais, haja vista que não se pode legitimamente coagir ninguém a falar e a agir sob pressupostos idealizadores discursivamente instrumentalizados por ideologias e opções políticas, quando, não, por interesses nem sempre confessáveis. O que é moral e o que é imoral exige, pois, o estabelecimento de uma espacialidade pública própria para a palavra e para a ação(6), haja vista que se trata de pauta pública interesse público que necessita de discussão democrática e paritária. O regime democrático enquanto consectário do primado constitucional da dignidade da pessoa humana não pode ser mais uma mera expressão argumentativa justificante ou mesmo legitimadora da lógica ?proposta? imposta pela racionalidade discursiva (pós)moderna. A democracia não pode ser mais algo sem sentido, sem substância, enfim, servir apenas como mais um argumento vazio de sentidos que é utilizado estratégica e instrumentalmente para toda e qualquer tomada de decisão sem limites, quando, não, para produção deslegitimada do que é moral ou imoral, através de uma ?exegese pervertida pelo desejo de salvaguardar o mando a qualquer preço?(7). O que é moral ou é imoral, assim, é tão desonesto e mal-intencionado quanto qualquer outra significação, pois já não significam mais nada consoante aproximações lacanianas(8).

A maioria dos discursos que se pretendem válidos buscam retoricamente demonstrar suas necessidades e naturezas argumentativas para a resolução das principais e importantes questões sociais. E isto tem sido realizado precisamente para alcançar uma aceitação cada vez maior de deliberações pautadas publicamente e, por assim dizer, politicamente dominadas através de certa ?lógica do razoável em face do circunstancialismo concreto do problema, em caso algum redutível à dedução lógica e necessária a partir de enunciados normativos gerais? eis, pois, a concepção tópico-retórica para Boaventura de Sousa Santos(9). A autoridade política num Estado de Direito que se pretende Democrático e Moderno não pode se afastar ou mesmo perder o sentido que o fundamenta, e, o sentido que deveria fundamentar a atuação estatal é a dignidade da pessoa humana. O regime democrático enquanto consectário da dignidade da pessoa humana deve se constituir num projeto político humanitariamente sério que legitime a atuação estatal, e, que não possibilite a subversão dos valores conquistados cotidianamente pela luta democrática por interesses políticos nem sempre confessáveis, os quais, pelo que se vê ultimamente, têm fundamentado deliberações governamentais acerca de pautas públicas. Por certo, não existe uma só e única resposta moralmente aceita como razoável para a melhoria da qualidade de vida individual e social. A questão é que se tem operado moralmente com idênticos fundamentos com que se tem discursivamente declarado como imoral, projetando-se, assim, estrategicamente uma completa amoralidade discursiva que a tudo justifica que a tudo legitima performaticamente através do argumento válido, do argumento razoável, enfim, num niilismo valorativo convencional e politicamente estabelecido. Moral e imoral se ainda não se tornaram instâncias amorais, por certo, passaram a ter respectivamente fundamentações que não guardam qualquer referência aos valores morais e ou imorais convencionados democrática e legitimamente. Isto é, moral e imoral encontram-se destituídos de qualquer significação ou mesmo referência significativa moral ou imoral, enfim, transformaram-se em sentidos sem sentido. Impõe-se, assim, resistir através de atitudes radicalmente críticas, buscando-se superar o sem sentido por sentidos, ?pois não posso/ não devo/ não quero/ viver como toda essa gente/ insiste em viver/ e não posso aceitar sossegado/ qualquer sacanagem ser coisa normal?!(10)

Notas

(1) BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 33.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 03 (Coleção Saraiva de legislação).

?Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…)

III a dignidade da pessoa humana;?

(2) SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. in Boaventura de Sousa Santos (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 427-461 (Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos, v. 3). Hermenêutica diatópica, de acordo com o autor, é um procedimento interpretativo que determina uma prática defensiva e promocional dos direitos humanos decorrente mesmo ?de uma entrega moral, afetiva e emocional baseada na incondicionalidade do inconformismo e da exigência de ação… a partir de uma identificação profunda com postulados culturais inscritos na personalidade e nas formas básicas de socialização… O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude um objetivo inatingível mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua por intermédio de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e outro em outra. Nisto reside o seu caráter diatópico… A hermenêutica diatópica requer não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas também um diferente processo de criação de conhecimento. A hermenêutica diatópica exige uma produção de conhecimento coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular, uma produção baseada em trocas cognitivas e afetivas que avançam por intermédio do aprofundamento da reciprocidade entre elas. Em suma, a hermenêutica diatópica privilegia o conhecimento-emancipação em detrimento do conhecimento-regulação Cfr. Santos (1995:25) sobre a distinção entre as duas formas de conhecimento, uma que conhece transformando o caos em ordem (o conhecimento-regulação) e outra que conhece transformando o colonialismo em solidariedade (o conhecimento-emancipação).?

(3) VELASCO, Marina. Ética do discurso: Apel ou Habermas? Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2001, p. 100 e ss.

(4) CADEMARTORI, Sérgio U. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

(5) VELASCO, Marina. Op. cit.

(6) ARENDT, Hannah. A condição humana. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

(7) ROMANO, Roberto. Contra o abuso da ética e da moral. Campinas: Revista Educação & Sociedade, ano XXII, n.º 76, out./2001. Este texto foi gentilmente encaminhado por Luiz Fernando Bianchini para a reflexão dos professores da Faculdade Dom Bosco.

(8) LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 903-907. ?Onde estou querendo chegar, se não a convencê-los de que o que o inconsciente traz a nosso exame é a lei pela qual a enunciação jamais se reduzirá ao enunciado de qualquer discurso? (…) O que é preciso dizer é que o [eu] dessa escolha nasce em outro lugar que não aquele em que o discurso se enuncia: precisamente naquele que o escuta.?

(9) SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Safe, 1988, p. 05. De acordo com o autor, ?explicitando a lógica implícita no movimento de codificação e… no projeto constitucional do estado liberal, levava ao extremo o princípio de legitimação assente na racionalidade jurídico-formal, formulado por Max Weber para caracterizar o fundamento da autoridade política do estado moderno… a leitura tópico-retórica tem implícita uma concepção democrática do direito e da sociedade e, portanto, um certo projeto político.?

(10) Bola de meia, bola de gude, composição e música de Milton Nascimento e Fernando Brant.

Mário Luiz Ramidoff é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná; mestre (CPGD-UFSC) e doutorando em Direito (PPGD-UFPR); professor das Faculdades Integradas Curitiba e da Faculdade Dom Bosco ramidoff@pr.gov.br.

Voltar ao topo