Júri: culpado ou inocente?

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 4.203/2001, que dispõe sobre a Reforma do Processo Penal, na parte que diz respeito às mudanças no processo do Júri. Se aprovado, irá simplificar, significativamente, a votação dos quesitos relativos à condenação ou absolvição do acusado, pelo Tribunal Popular do Júri. Ao meu ver, processo como um todo apesar das demais mudanças tópicas propostas, lamentavelmente, ainda continuará demorado, sinuoso, repetitivo. Continuará sendo um caminho tortuoso, até chegar-se ao dia da sessão para a qual serão convocados os juízes populares, que dispõem de competência constitucional para o julgar os autores de crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, instigação ao suicídio e aborto).

Trata-se de competência prevista no art. 5.º, inciso XXXVIII, da CF e pode ser entendida como uma exigência do princípio republicano ou do princípio da soberania popular. Nosso sistema constitucional consagrou o Júri como um direito individual fundamental e aí está sua fonte de legitimidade políticojurídica. E é assim que devemos entendê-lo.

Historicamente, o Júri cumpriu uma enorme e importantíssima missão no sentido da humanização e democratização da Justiça criminal. Este é um fato indiscutível, mesmo que tenhamos restrição à presença desta forma de Justiça popular no contexto do Estado Democrático contemporâneo.

Em artigo anterior, verificamos que o procedimento para julgamento dos crimes sujeitos à competência do Júri é de uma morosidade inadmissível. Há uma fase pré-judiciária, das investigações policiais. Com a denúncia, inicia-se a fase da instrução criminal que, após a realização dos diversos atos processuais de praxe, termina com a sentença de pronúncia. Esgotados recursos que são freqüentes, é que será designada data para julgamento pelos juízes leigos, que constituirão o Tribunal do Júri.

Iniciada a sessão, somente após os longos discursos de acusação e defesa, é que os jurados recolhem-se à sala secreta para o veredicto final. Esta fase final exige dos jurados um verdadeiro malabarismo de hermenêutica jurídica para responder adequadamente a uma série de complicados e, com freqüência, contraditórios quesitos sobre a responsabilidade criminal do acusado.

O procedimento previsto em nossa lei processual e complementado por inúmeras fórmulas criadas pela praxe judiciária para a votação dos caprichosos quesitos – marcado por uma bateria infindável de perguntas – é desnecessariamente complicado e confuso. É um festival de perguntas e respostas, em meio a uma atmosfera psicologicamente sufocante e que submete os jurados a um angustiante interrogatório kafkiano.

Nos países que adotam o Júri Popular, principalmente nos que seguem o modelo inglês, de onde se originou a Instituição, ao final dos debates, os jurados recolhem-se à sala secreta para decidir de forma objetiva, apenas uma questão fundamental: se o acusado é culpado ou inocente. Simplificando toda a questão jurídica da culpabilidade e da própria ilicitude penal, parte-se da premissa de que qualquer cidadão tem condições de decidir, com base nos valores éticojurídicos predominantes no meio social em que vive, se o acusado de um crime é culpado ou inocente (guilty or not guilty), ou seja, se deve ser absolvido ou condenado.

No Brasil, ao contrário, o procedimento é absurdamente complicado. Aqui, o Júri chegou através do modelo francês, chamado de escabinado (échevinage). Enquanto que, na França e em outros países, já antes da II Guerra Mundial, o procedimento foi simplificado e racionalizado (na sala de votação, os jurados discutem livremente sobre a absolvição ou condenação e, neste último caso, com a assessoria jurídica do juiz togado, aplicam a pena que entenderem mais justa), nós continuamos a praticá-lo da forma mais complicada.

Qual o advogado, promotor de Justiça, juiz ou o cidadão comum que não sabe das imensas dificuldades a serem superadas pelos juízes leigos para chegarem a uma decisão tecnicamente correta e justa? Os profissionais da área sabem o quanto são comuns decisões equivocadas e contrárias à prova dos autos ou da própria vontade dos jurados, tamanha é a tensão psicológica diante de tantas e complexas perguntas.

Por isso, não é rara a hipótese de um jurado errar no momento da manifestação de um dos inúmeros votos que lhe são exigidos. No quesito sobre a materialidade, devido o clima de tensão que toma conta do recinto (sete jurados fechados numa sala, em frente a um juiz, promotor de Justiça, advogados, escrivão etc), não é rara a apuração de votos negando a morte de uma vítima já enterrada há meses ou anos. Do mesmo modo, aparecem votos negando a autoria, em casos em que o próprio acusado é réu confesso.

Os jurados passam então a ser submetidos a uma bateria de outros quesitos, muito deles juridicamente complexos e mesmo contraditórios. Como é comum a alegação de legítima defesa, cabe aos jurados responder sim ou não, sempre por meio de voto secreto, se houve agressão injusta, se esta era atual ou iminente, se foi necessária e moderada, se houve excesso doloso ou culposo. Também é comum quesitos sobre uma imaginária agressão (legítima defesa putativa), sobre coação moral, relevante valor moral ou social, doença mental etc.

No total, o número de quesitos pode chegar a duas ou três dezenas, o que se torna uma grande insensatez, pois contraria a idéia de uma justiça criminal objetiva, clara e simplificada em seus procedimentos. Trata-se de um autêntico festival de complicações envolvendo sete leigos, que não podem falar, nem muito menos solicitar esclarecimentos entre si e onde o grande prejudicado acaba sendo o acusado e a própria sociedade, ávida de uma Justiça Criminal mais segura e serena.

Diante disto, a reforma do Código de Processo Penal, com a aprovação do referido projeto de lei, é urgentemente necessária. Se aprovada a proposta legislativa, após decidirem sobre a materialidade e a autoria ou participação, os jurados responderão apenas a uma pergunta simples, mas essencial: o acusado dever ser absolvido ou condenado? E esta é uma questão que todo o cidadão tem plena condição de responder. O risco de respostas equivocadas ou contraditórias será mínimo, pois os jurados, em nome da sociedade e do princípio republicano, dirão apenas se o réu é culpado ou inocente.

Se a resposta será justa, isto já é uma outra questão.

João José Leal é professor do CPCJ/Univali, ex-procurador geral de Justiça e promotor de Justiça aposentado. Associado à AIDP e ao IBCCrim.

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