Início de execução do crime: breves apontamentos sobre os critérios diferenciadores dos atos preparatórios (impuníveis) dos atos executórios (puníveis)

Neste trabalho busca-se apenas concorrer para a reflexão sobre um dos temas mais complexos do Direito Penal, que é a caracterização do início da execução do crime. O Código Penal, ao tratar do tema, apenas menciona que o crime tentado ocorre quando há início de execução que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Disso resulta que traçar contornos precisos para distinguir entre atos preparatórios (impuníveis) e atos executórios (puníveis) é tarefa árdua, visto que a lei penal não específica, de modo a demarcar com precisão, os limites do que se deva entender por atos preparatórios ou executórios.

Na busca de uma solução, duas teorias são utilizadas: uma objetiva e uma subjetiva. A teoria objetiva se relaciona com a concepção causal de conduta, segundo a qual o tipo compreende aspectos estritamente objetivos, sendo, portanto, irrelevante qualquer consideração acerca do plano delituoso do agente. Já a teoria subjetiva abstrai qualquer possibilidade de distinção fundada em requisitos objetivos, devendo a distinção ser realizada de acordo com o projeto criminoso do autor. Essa separação radical entre as questões de ordem subjetiva e objetiva não se eternizou, pois ambas acabaram por incorporar elementos uma da outra, resultando na seguinte subdivisão: teorias objetivas próprias e impróprias e subjetivas extremas e limitadas.

As teorias objetivas próprias têm como elemento comum o fato de que a conceituação do início de execução deve ter como referência o tipo penal, considerando como ato executivo a conduta que realiza em parte o previsto no tipo (teoria formal de Beling), e se distinguem por ampliarem o significado da conduta típica, estendendo-a às condutas que, por sua vinculação natural e necessária com o fato típico, mesmo não se encaixando diretamente no tipo, devem ser tidas como executórias de um crime (Frank). Assim, para essa teoria, se uma pessoa é encontrada no telhado de uma casa, já com telhas retiradas, tal conduta se caracteriza como início de execução do crime de furto; todavia, para a teoria objetivo-formal, esse ato constitui ato preparatório, pois, não tendo seu autor tocado em nenhum objeto, apesar de estar no telhado, a conduta ainda não se enquadra no verbo subtrair.

Para as teorias objetivas impróprias os atos executivos são inequívocos e os preparatórios são equívocos (teoria pragmática de Carrara). Esse critério não é preciso. Basta lembrar o sempre atual exemplo de Nelson Hungria, da pessoa que, tento sido esbofeteada, compra um revólver e vai procurar o seu agressor para matá-lo, enquanto a visada vítima, desconfiada, muda o seu trajeto e se livra do atentado. No caso ninguém negaria a inequivocidade dos atos praticados, da mesma forma não se negaria tratar-se de atos meramente preparatórios, por serem inidôneos(1). Ainda, mesmo aquele que for surpreendido no topo de uma escada escalando um muro estará praticando um ato idôneo, mas não um ato inequívoco de prática de furto, pois pode visar tanto ao furto como a qualquer outro crime, por exemplo, o seqüestro de uma pessoa. Para a teoria objetivo-material, também conhecida como teoria da hostilidade ao bem jurídico (M. E. Mayer), o início de execução ocorre quando há o ataque direto ao bem jurídico. Se nenhum bem jurídico foi comprovadamente exposto a perigo, os atos praticados, mesmo reveladores de um propósito criminoso, são atos preparatórios, irrelevantes penalmente. Contrariamente às teorias objetivas, o início de execução, para as teorias subjetivas na sua vertente mais radical, é definido unicamente pelo plano criminoso do autor revelado (exteriorizado) por qualquer ato capaz de firmar o início de execução. Assim, se o agente corre em direção a uma mulher dizendo que irá estuprá-la, mesmo que não consiga aproximar-se dela, tem-se caracterizada a tentativa de estupro (teoria subjetiva extrema).

Para a teoria objetiva individual, que utiliza elementos a mais, de ordem objetiva e subjetiva, a distinção entre atos preparatórios e atos executórios se processa através de um critério subjetivo – o do plano do autor – sem, contudo, prescindir de um critério objetivo, pois leva em consideração que o crime seja integrado também por atos antecedentes que guardem necessária conexão com a conduta típica (Frank). Destarte haveria início de execução nas ações do autor que, uma vez conhecido seu plano, aparecem, segundo a concepção natural, como partes integrantes do comportamento típico.

A partir de todo o exposto pode-se afirmar que a distinção entre ato preparatório e ato executório do crime deve ser feita caso a caso, de acordo com a descrição típica. Qualquer iniciativa de encontrar um critério genérico, que atenda a todas as hipóteses fáticas, é fadada a completo fracasso e ineficácia. É em referência ao tipo penal especificamente considerado que se pode decidir se o ato praticado é preparatório ou executório. Também é certo que, por imperativo do princípio da legalidade, já que se concebe como ato executivo apenas o ato típico, a teoria objetivo-formal é a que melhor atende às finalidades do Direito Penal (garantista). Não obstante, em se aceitando sem restrições os seus postulados, várias situações ficariam impunes. Por exemplo, não seria punido por furto tentado o sujeito que, agindo com o fim de subtrair, é encontrado, de madrugada, no telhado de uma casa após já ter retirado algumas telhas, pois essa conduta não se amolda ao verbo subtrair do crime de furto. Por isto, na distinção entre ato preparatório e ato executório, propõe-se a integração e interação das teorias, adotando-se uma teoria mista, que ao mesmo tempo respeite ao máximo os postulados da legalidade e não restrinja a tutela de bens jurídicos. Nesse trilhar, é a teoria objetivo-individual, complementada pela idéia de perigo ao bem jurídico (critério material), a que mais se aproxima dessas exigências.

Conseqüentemente, para identificação do início de execução de qualquer crime, é imprescindível a presença integral dos seguintes requisitos: a) conhecimento do objetivo do autor (verificável de acordo com as circunstâncias); b) que haja realização de atos tendentes à prática da ação típica (prescinde-se da adequação, bastando que a conduta possa ser vinculada ao tipo); c) atos idôneos à consumação do crime; e, d) probabilidade concreta de perigo ao bem jurídico.

Paulo Cezar da Silva é delegado de Polícia, mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá. Professor de Direito Penal e Processual no Curso de Graduação da Universidade Paranaense de Paranavaí e das Faculdades Nobel de Maringá e coordenador do Curso de Especialização em Direito e Processo Penal da Unipar de Paranavaí.

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