Incoerência interna do Sistema Administrativo Sancionador da Polícia Civil do Paraná pode ser o caminho da impunidade

Logo após a passagem da CPI do narcotráfico pelo Paraná, houve, conforme amplamente noticiado, uma reestruturação (recrudescimento) no sistema administrativo sancionador da Polícia Civil do Estado, com a edição da Lei Complementar 89/01, de 25 de julho de 2001.

Como o que freqüentemente se vê com o sistema penal, a doutrina do law and order norteou o processo legislativo citado, o que foi acompanhado da propagação da idéia de que a alteração legislativa seria o remédio de todos os males “policialescos”, o que é uma falácia, como ao tratarem do sistema penal asseveram, dentre outros CIRINO, HULSMAN, LE NAIN e ZAFARONNI.

Inicialmente temos de considerar que instauração de procedimentos administrativos disciplinares no âmbito da Polícia Civil do Estado do Paraná vem prevista taxativamente em Lei Complementar (LC 14/82 e alterações). Vejamos: o inciso VIII do artigo 6.º assim dispõe:

“6.º Ao Conselho da Polícia Civil do Estado do Paraná compete:

VIII ? determinar, com exclusividade, a instauração de processos administrativos disciplinares contra servidores policiais civis;”

Reza o artigo 27 inciso II da Lei Complementar 89/01, de 25 de julho de 2001, que a Corregedoria Geral da Polícia Civil tem competência para:

“II- determinar a instauração de investigações preliminares e sindicâncias, através da Corregedoria de Assuntos Internos, com a designação de autoridade ou da comissão para apuração dos requisitos previstos para a confirmação ou não do servidor policial civil no cargo para o qual foi nomeado, durante o estágio probatório;

Assim foram definidas as atribuições aos órgãos correspondentes para a instauração de cada modalidade de procedimento disciplinar, quais sejam: a investigação preliminar, a sindicância e o processo administrativo disciplinar.

Ocorre que, mais adiante, há ainda previsão legal de envio de documentos à Corregedoria Geral da Polícia Civil para instauração de Processo Administrativo Disciplinar, na forma do disposto no artigo 257 do mesmo diploma legal, que é assim grafado:

” Quando o servidor policial civil for indiciado em inquérito policial pela prática de crime previsto nos incisos do artigo 230, desta lei, a autoridade policial remeterá cópia das respectivas peças, de imediato, ao Corregedor Geral da Polícia Civil, para a instauração de processo disciplinar”.

Da conjugação dos dispositivos legais supramencionados, podemos chegar a algumas conclusões nem sempre concordantes entre si, das quais citamos duas:

a) Quando no inciso VIII do artigo 6.º acima citado, se vê grafado o termo “com exclusividade“, pode-se concluir que a remessa de peças ao Órgão correicional prevista no artigo 257 transcrito acima, o autoriza tão somente a emitir parecer sobre o assunto e remetê-lo à apreciação do E. Conselho da Polícia Civil que, com exclusividade determinará a instauração ou não de Processo Administrativo Disciplinar; Isto porque quem pode o mais pode o menos, não sendo válida a recíproca.

Ou

b) A Corregedoria Geral da Polícia Civil pode instaurar Processos Administrativos Disciplinares em qualquer dos casos acima, não havendo qualquer exclusividade do Conselho da Polícia Civil em praticar tal ato. É esta a posição adotada hoje.

Põe-se então conflito aparente de normas, de cuja interpretação depende a regularidade de inúmeros Processos Disciplinares e que se resolve, por aparente que é, por meio da exegese da norma contida no artigo 244 do mesmo estatuto, quando em seu caput reza que “Compete ao Conselho da Polícia Civil, com exclusividade, determinar a instauração do processo disciplinar, ex-officio, mediante representação fundamentada, sindicância, investigação preliminar ou por provocação da autoridade policial, observado o previsto no artigo 257.” Por oportuno, ressaltamos que não há a regulamentação baixada pelo Poder Executivo disciplinando casos de delegação de atribuição para a instauração de processos disciplinares pela Corregedoria Geral da Polícia Civil, conforme previsto no § 1.º do artigo 244 em tela.

O artigo 257 supracitado, por si só, não autoriza (hoje) o senhor corregedor geral da Polícia Civil a determinar instauração de Processo Administrativo Disciplinar, posto que, por conta da incoerência que a outra interpretação gera(ria) no sistema administrativo sancionador em foco, ter-se?ia, na seara da lições de Garces Ramos, incoerência interna do sistema, o que leva à inconstitucionalidade (do dispositivo legal e da sanção aplicada), porque fere o Princípio da Isonomia (Celso Antônio). O fere, pois que o indiciamento não é julgamento de mérito em sede judiciária. Não deve operar para fins de antecedentes criminais. Não faz do “indiciado” um condenado. Se assim o fosse, feriria também o Princípio Constitucional da Presunção de Inocência. Nesta linha de raciocínio, admitir que o disposto no artigo 257 seja expressa autorização para o Órgão Correicional instaurar Processo Administrativo Disciplinar significa tratar desigualmente os iguais, vez que para uns (não indiciados) o processo só é instaurado mediante o consenso de todo um Conselho. Para outros (indiciados), basta a manifestação do Senhor Corregedor Geral.

Sob nosso ponto de vista, a melhor interpretação ao disposto no artigo 257 é a que pela norma nele contida, se autoriza tão somente o Órgão Correicional , quando receber notícia de indiciamento de servidor policial civil, determinar seja instaurada Investigação Preliminar ou, se entender comprovados a materialidade e indícios de autoria do ilícito administrativo, a emitir parecer fundamentado sobre o assunto e remetê-lo à apreciação do E. Conselho da Polícia Civil que, com exclusividade determinará, de forma motivada, a instauração ou não de Processo Administrativo Disciplinar, na forma do artigo 244 já citado, c/c o inciso VIII do artigo 6º da mesma Lei Complementar .

Como ensina Aramis Nassif,(1) “O processo, sabidamente, é uma atividade típica, ou seja, os atos jurídicos processuais são definidos, quanto à sua forma, pelo legislador…À atipicidade ou omissão corresponde, pois, uma sanção, que será mais ou menos grave conforme o desvio do modelo típico abstratamente descrito na lei, conforme se verá no tanto que se refira, neste texto, a respeito da classificação das nulidades“(2001:18/19)

Ao atender o princípio de que não há nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa, temos de lembrar a necessidade de declaração de ofício e a qualquer tempo, quando houver nulidade absoluta, definida por Aramis Nassif como aquela que se dá “quando há descumprimento de formalidade essencial do ato, estabelecida no interesse irremissivelmente público. Ocorre pela atipicidade na prática do ato em relação à norma….Presume-se o prejuízo. Será sempre absoluta quando houver violação a princípio constitucional do processo (ampla defesa, contraditório, juiz natural, publicidade e motivação das decisões do poder judiciário, etc).” (2001:23/24)

A Nulidade anunciada vicia todo o procedimento, por desde logo e também, ferir o Princípio do Contraditório. Vejamos:

“A primeira exigência do contraditório consiste na informação através dos atos de comunicação processual: a citação e a intimação. Segundo Dinamarco: O processo sem citação é processo nulo; a citação irregular corresponde à citação inexistente e as intimações são indispensáveis a todo momento.(1988:221)

Por força do contraditório, a citação resta compreendida não somente como ato de adequada comunicação processual, mas ato essencial à formação da relação jurídica processual. O servidor acusado ou litigante é chamado não somente para se defender, mas para integrar um processo de que é sujeito processual”. (2001:222)(2)

Porém o Estado Democrático de Direito não é compatível com ilegalidades, desvios de poder ou inconstitucionalidades, nem mesmo sob a justificativa retórica de se imprimir à Instituição Policial como um todo maior credibilidade e seriedade.

A interpretação extensiva do artigo 257 acima transcrito por certo levará à reforma das decisões administrativas que possam ser exaradas tomando-a por base, vez que correspondem à negativa dos direitos e garantias individuais. E por fim, não causará espanto se, por conta de reformas seguidas destas decisões, operar-se descrédito no Conselho da Polícia Civil e conseqüentemente na Instituição Policial que, mesmo sob forte retórica, não conseguirá cumprir com a programação estatuída pela interpretação que se quer dar ao sistema. Caminha-se assim à certeza da impunidade.

Notas

(1) in Nulidades no processo penal. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2001.

(2) apud Bacellar R.F., in Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo:Max Limonad, 1988;

Luís Fernando Viana Artigas Jr.

é delegado de Polícia, pós-graduando em ciências penais na PUCPR, membro da 2.ª Câmara Disciplinar do Conselho da Polícia Civil do Estado do Paraná.

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