Inadimplência dos contratos de crédito imobiliário versus efetivação do direito fundamental à moradia

Os arts. 49 e 50 da Lei 10.931/2004 estabelecem condição para a concessão e manutenção de liminares "nas ações judiciais que tenham por objeto obrigação decorrente de empréstimo, financiamento ou alienação imobiliários". Segundo a lei, o autor da ação deverá: 1.º) discriminar na petição inicial os valores sobre os quais pretende controverter; 2.º) continuar a pagar o valor tido por incontroverso.

Estas regras são rentes aos princípios do direito contratual contemporâneo. O art. 422 do Código Civil estabelece expressamente que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé". O princípio da boa-fé objetiva, a que se refere essa regra, impõe aos contratantes o dever de agir com lealdade, cooperando com a outra parte. Por isso que, modernamente, o Direito reprova a conduta do contraente que não age eticamente, seja na formação, seja na execução do contrato.

Exemplo desta tendência é a pacífica orientação do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, em ação movida pelo devedor com o intuito de retirar o registro de seu nome de cadastro restritivo de crédito, sendo discutida apenas parte do débito, a liminar somente pode ser concedida se o devedor depositar o valor referente à parte tida por incontroversa (STJ, Recurso Especial 527618-RS, relator Ministro Cesar Asfor Rocha, julgado em 22.10.2003). Os argumentos que fundamentam esta orientação são: a) a circunstância de o devedor ser protegido pelo Código de Defesa do Consumidor não significa que não deva pagar suas dívidas; b) o simples fato de parte da dívida ser discutida em juízo não é fundamento para que o restante não seja pago; c) freqüentemente, tais ações visam apenas impedir o credor de exigir o cumprimento da obrigação, e não, propriamente, de se discutir eventuais vícios do contrato.

Assim, os arts. 49 e 50 da Lei 10.931 inserem-se num contexto mais amplo: por um lado, não se nega ao devedor o direito de discutir sua dívida ou cláusulas contratuais em juízo; porém, considera-se inadmissível que o ajuizamento de tal ação seja artifício que permita ao devedor deixar de cumprir suas obrigações.

É interessante notar que a regra que impõe o pagamento do valor incontroverso pelo devedor de obrigação relativa a empréstimo imobiliário realiza, materialmente, o direito fundamental à moradia, que é assegurado expressamente pela Constituição Federal (art. 6.º), e que decorre, diretamente, do princípio constitucional do respeito da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1.º, III).

Toda a legislação infraconstitucional deve ajustar-se a estes princípios constitucionais, a fim de que este direito seja efetivo, e se permita, realmente, que todos os cidadãos tenham acesso à sua moradia própria. Sob este aspecto, deve ser considerada inconstitucional toda a regra que crie obstáculo à consecução deste direito.

Assim, por exemplo, uma decisão judicial que, ao diminuir o valor da prestação mensal devida pelo mutuário, sobrecarrega o saldo devedor e, conseqüentemente, amplia o prazo de pagamento da dívida, viola, diretamente, o direito constitucional à moradia. É que, como é cediço, enquanto não saldada integralmente a dívida, o mutuário não exercerá, em sua plenitude, o direito de propriedade sobre o imóvel. Uma decisão assim proferida, a pretexto de favorecer o mutuário, acaba lhe causando prejuízo, já que posterga a realização do direito à moradia.

Pense-se, por exemplo, em caso em que o mutuário pretenda pagar apenas a parcela da dívida relativa aos juros, postergando a amortização do valor principal. Tal decisão satisfaz o interesse de pagar uma prestação mensal menor. No entanto, esta decisão causa ao mutuário um mal maior, já que posterga o pleno acesso à moradia, uma vez que o valor devido que não seja imediatamente adimplido deverá ser pago no futuro, o que poderá fazer do mutuário um eterno devedor, transformando seu direito constitucional à moradia em quimera. Sob esse prisma, decidiu o Tribunal Regional da 4.ª Região que "a fixação da prestação mensal, que apenas antecipa juros, não realiza o direito à moradia e cria falsa expectativa de cumprimento do contrato […]" (Apelacão 584460, relator Desembargador Jairo Schafer, j. 30.03.2005).

Vê-se, diante disso, que os arts. 49 e 50 da Lei 10.931/2004 integram esse esforço, ou, mais que isso, realizam praticamente a determinação constitucional, já que, ao impedir que o mutuário deixe de adimplir o valor tido por incontroverso, fazem com que o mesmo alcance, dentro do prazo contratual e sem protelação, a sua moradia. Caso, ao contrário, se permitisse que o valor tido por incontroverso tivesse seu pagamento postergado, a moradia própria seria postergada já que o valor devido deverá ser pago, mais cedo ou mais tarde, como condição para a liberação do imóvel ao mutuário.

A realidade tem demonstrado que o não pagamento do valor incontroverso pode gerar conseqüência ainda mais negativa, para o mutuário. Consoante constatou recente decisão do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, se o mutuário não pagar corretamente as prestações mensais em seu vencimento, "será forçado a inadimplir [a obrigação] por completo, dificultando a recomposição do contrato, ao final da ação" (Apelação 2000.72.02.002698-0-SC, julgado em 01.03.2005, relator Desembargador Erivaldo Ribeiro dos Santos). Evidentemente, caso, ao final da tramitação da ação, o mutuário não consiga adimplir a soma dos valores atrasados, o contrato será rescindido, com a conseqüente perda do imóvel pelo mutuário. Tal situação, naturalmente, contrariaria o art. 6.º da Constituição.

Percebe-se que, sob este prisma, os arts. 49 e 50 da Lei 10.931 não deixam de ter também um aspecto "pedagógico", na medida em que orientam o devedor no sentido de que melhor que correr riscos que gerarão resultados que não poderão ser suportados ao final do processo, é pagar a quantia que, reconhecidamente, é devida ao credor, o que permitirá ao mutuário usufruir o direito de propriedade, no tempo previsto no contrato.

Luiz Rodrigues Wambier é advogado, mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, doutor em Direito pela PUCSP, professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa e no curso de Mestrado em Direito pela PUCPR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

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