Gravação ambiental clandestina: é uma prova lícita?

g11.jpgNo Informativo 395 (do STF) lê-se a notícia de que nossa Corte Suprema "iniciou julgamento de questão de ordem suscitada em inquérito no qual se imputa a senador e a prefeito a suposta prática de desvio de verbas federais (DL 201/67, art. 1.º, I). O ministro Marco Aurélio, relator, resolveu a questão de ordem no sentido de determinar o trancamento do inquérito por entender que sua instauração teve origem em prova obtida por meio ilícito (CF, art. 5.º, LVI), qual seja, uma gravação ambiental, em fita magnética, de diálogo realizada por terceiro sem conhecimento dos interlocutores nem o esclarecimento da forma como obtida. Em divergência, o ministro Eros Grau, acompanhado pelos ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie e Carlos Britto, admitiu o processamento do inquérito, ao fundamento de que inexiste a ilicitude apontada, e, ainda que houvesse, ela não teria o condão de contaminar as provas subseqüentes. O julgamento foi suspenso com o pedido de vista do Min. Joaquim Barbosa. Inq.º 2116-QO/RR, rel. ministro Marco Aurélio, 1.º 8.2005. (INQ-2116)".

Não temos ciência do inteiro teor dos quatro votos que estão (por ora) dando como válida a gravação ambiental clandestina. De qualquer maneira, é muito preocupante a sua admissibilidade ampla e irrestrita. No que se refere à gravação telefônica o STF a tem admitido como prova válida em algumas circunstâncias, isto é, há exigências que devem ser cumpridas. Em primeiro lugar deve se tratar de gravação de comunicação própria (não alheia). De outro lado, acham-se em jogo relevantes interesses e direitos da vítima. Casos de extorsão, por exemplo, em que a vítima grava sua própria conversa telefônica, conta com justa causa para a revelação do conteúdo dessa conversa. E é legítima a prova assim obtida. Não faz sentido nesse caso exigir qualquer tipo de comunicação prévia ao agente do crime. Atendidas essas circunstâncias, a prova é válida.

A tendência lógica seria o STF admitir a gravação ambiental clandestina com as mesmas restrições e cautelas. Admitir a gravação ambiental clandestina (gravação de sons que são emitidos num determinado ambiente) como meio lícito de prova, de maneira ampla, significa eliminar nossa privacidade (ou seja, proscrever um dos mais importantes direitos fundamentais). Mas nenhuma restrição a direito fundamental pode afetar o seu núcleo essencial.

Clássica doutrina do próprio STF, nessa linha, sempre enfatizou que a gravação ambiental clandestina constitui, em princípio, prova ilícita (STF, HC 80.949-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30.10.01). A busca da verdade real (ou material) não pode concretizar-se a qualquer preço. A proibição de utilização de prova ilícita é garantia constitucional (CF, art. 5.º, LVI) que se sobrepõe à verdade real. É impertinente, de outra parte, como bem salientou o Min. Sepúlveda Pertence, "apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação".

Em duas situações o ordenamento jurídico brasileiro já regulamentou a gravação clandestina (lei do crime organizado – Lei 9.034/1995 – e nova lei de tóxicos – Lei 10.249/2002). Em ambas exige-se autorização judicial prévia, justamente porque se trata de uma intervenção em comunicação alheia.

Num caso de gravação clandestina de "conversa informal" do indiciado com policiais a prova foi tida como ilícita. Como proclamou Sepúlveda Pertence (HC 80.949-RJ): "Ilicitude decorrente – quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental – de constituir, dita "conversa informal", modalidade de "interrogatório" sub-reptício, o qual – além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C.Pr.Pen., art. 6.º, V) -, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio. O privilégio contra a auto-incriminação – nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição – além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. – importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência – e da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em "conversa informal" gravada, clandestinamente ou não. Escuta gravada da comunicação telefônica com terceiro, que conteria evidência de quadrilha que integrariam: ilicitude, nas circunstâncias, com relação a ambos os interlocutores".

A conclusão a que se chega é indubitável: "A prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de conversa telefônica alheia é patentemente ilícita em relação ao interlocutor insciente da intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado". Essa mesma conclusão é válida para a gravação ambiental, que, sem autorização judicial prévia, só pode valer como prova em casos excepcionalíssimos e desde que envolva interesses e direitos de quem fez a gravação. Fora disso, é manifesta a inconstitucionalidade da prova.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do Ipan (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do PRO OMNIS-IELF (Rede Brasileira de Telensino – 1.ª do Brasil e da América Latina www.telensino.com.br

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