Gestão fraudulenta ou temerária de instituição financeira: crime instantâneo ou habitual? Implicações no âmbito da adequação típica

Antes de ser aplicada a lei deve ser interpretada, a fim de se evidenciar o seu sentido e alcance. Não obstante, por razões diversas – como emprego de cláusulas genéricas, complexos elementos normativos, ambigüidade ou parcimônia terminológica, etc. – não raras vezes, os resultados obtidos com a interpretação são distintos e controversos. É o que ocorre, por exemplo, com a interpretação do artigo 4.º -caput – e parágrafo único da Lei n.º 7.492/86, que trata da gestão fraudulenta ou temerária de instituição financeira. Para alguns trata-se de crime instantâneo, sendo ?desnecessária a habitualidade para a configuração do delito?,(1) e para outros é crime habitual, para cuja configuração ?há necessidade de um número substancial de atos?.(2)

Por isso propõe-se no presente estudo evidenciar se o crime sob comento possui natureza instantânea ou habitual, pois essa questão é de suma importância, uma vez que, em conformidade com o modo como ele seja concebido, a conduta isolada de gestão fraudulenta ou temerária será ou não típica.

De acordo com o momento consumativo, os crimes podem se classificar em instantâneos e habituais (ou ainda em permanentes, eventualmente permanentes e instantâneos de efeitos permanentes sem interesse no que diz respeito a este estudo). Instantâneo é o crime que se consuma com a ocorrência do resultado em momento certo, como ocorre no artigo 19 da Lei n.º 7.492/86, que especifica ?obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira?, em que a violação do bem jurídico pode resultar de uma conduta menos ou mais demorada; entretanto, a consumação se dá em certo instante, ou seja, no momento em que o agente obtém o financiamento, que é o resultado previsto no tipo. Outras situações há em que a adequação do fato ao tipo depende da existência de vários atos. Isto acontece quando se utilizam, na construção dos tipos penais, verbos que, por sua natureza e significado, dão idéia de reiteração de comportamentos, como, por exemplo, o verbo exercer utilizado no artigo 282 do Código Penal, ou a expressão fazer operar contida no artigo 16 da Lei n.º 7.492/86. Nesses casos, diz-se então tratar-se de crimes habituais, nos quais um ato apenas não se ajusta ao tipo penal, sendo necessária a realização de dois ou mais atos aptos a demonstrar a existência de uma conduta freqüente.

O crime de gestão fraudulenta ou temerária deve ser considerado como habitual, porquanto em sua descrição típica empregou-se o verbo ?gerir?, que contém a idéia de reiteração, de repetição de atos praticados em um contexto temporal e espacial. Por isso não é possível pensar em uma gestão de um só ato. E mais, é um irrelevante penal a realização de apenas um ato, ainda que fraudulento ou temerário, exceto no caso de adequar-se a outro tipo penal.

Contra tal concepção argumenta-se que essa opinião ?levaria à absurda admissão da possibilidade de o administrador cometer um único ato fraudulento ou temerário durante sua gestão e levar a instituição financeira à inadimplência, sem que nenhuma responsabilidade penal pudesse advir por tal conduta?.(3) Ou ainda, que o crime é ?habitual impróprio, ou acidentalmente habitual, em que uma única ação tem relevância para configurar o tipo, não obstante sua reiteração não configure pluralidade de crimes?.(4)

A nosso juízo, certamente que não se pretendeu, através do artigo 4.º – caput – e parágrafo único da Lei n.º 7.492/86, punir atos isolados de gestão fraudulenta ou temerária, pois do contrário, a conduta incriminada seria praticar ato de gestão fraudulento (ou temerário) e não gestão fraudulenta (ou temerária). Logo, admitir outra interpretação ao termo gestão, significa criminalizar atribuindo a uma expressão jurídica sentido diverso do normal, visto que, é evidente que o tipo não se satisfaz coma realização de um ato apenas de fraude ou de inobservância às regras do mercado, ao contrário, ?exige, necessariamente, uma sucessão de atos apreciáveis num determinado contexto e lapso temporal?,(5) o que vale dizer que se trata de crime habitual.

Notas

(1)    Nesse sentido: STJ, REsp 637.742/PR, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 28.09.2005, DJ 07.11.2005, p. 344; TRF 3.ª Região, ACR – APELAÇÃO CRIMINAL 1999.03.99.110790-6/SP, Rel. JUIZA SUZANA CAMARGO, Quinta Turma, DJ de 24/06/2003, p.310.

(2)     Nesse sentido: TRF 4.ª Região, ACR – APELAÇÃO CRIMINAL 200204010523040/PR, Rel. JUIZ TADAAQUI HIROSE, SÉTIMA TURMA, DJ de 12/05/2004, p. 712; TRF 4.ª Região, ACR – APELAÇÃO CRIMINAL 200104010717308/PR, Rel. JUIZ ÉLCIO PINHEIRO DE CASTRO, OITAVA TURMA, DJ de 01/10/2003, p. 712.

(3)    Nesse sentido: TRF 3.ª Região, ACR – APELAÇÃO CRIMINAL 1999.03.99.110790-6/SP, Rel. JUIZA SUZANA CAMARGO, Quinta Turma, DJ de 24/06/2003, p. 310.

(4)     MAIA, Rodolfo Tigre. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 58.

(5)     SILVA, Antônio Rodrigues. Crimes do colarinho branco. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 48.

Paulo Cezar da Silva é delegado de Polícia; mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá; professor de Direito e Processo Penal no Curso de Graduação da Universidade Paranaense de Paranavaí e das Faculdades Nobel de Maringá e coordenador do Curso de Especialização em Direito e Processo Penal da Unipar de Paranavaí.

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