Exame da OAB e empregabilidade – I

O diploma de bacharel em Direito (e lamentavelmente não é o único), há tempos, já não significa a plena garantia de emprego ou mesmo o exercício efetivo de uma profissão. O primeiro obstáculo com o qual se depara esse bacharel é o exame de ordem (da OAB) que, embora absolutamente necessário, é visto cada vez mais como o grande vilão da empregabilidade (ou profissionalização) do diplomado.

Os últimos exames da OAB estão revelando baixos índices de aprovação (cerca de 10%, em alguns Estados). Em dezembro de 2003 foram aprovados, em São Paulo, 25,18%. Daí para cá a queda na aprovação tem sido constante. Em 2004 apenas 13,2% foram aprovados no primeiro exame. No segundo, 8,57%. Em abril de 2005 tão-somente 12,2% dos 28 mil candidatos passaram para a segunda fase. Em setembro de 2006 apenas 16,16% alcançaram aprovação.

Esse complexo problema, entretanto, não pode ser enfocado sectariamente (parcialmente). Formou-se em torno dele um círculo vicioso que é o seguinte: a OAB culpa as faculdades e o MEC (grande quantidade de faculdades, baixo nível de ensino, falta de comprometimento com o aluno, má remuneração dos professores etc.; quanto ao MEC se diz que não estaria fiscalizando bem as faculdades, que aprova faculdade a todo minuto etc.); as faculdades, por seu turno, culpam o aluno (que apresenta baixo nível de escolaridade, que é analfabeto, que não se interessa pelo que é ensinado etc.); o aluno, por sua vez, culpa tanto a faculdade (baixo nível dos professores, método de ensino ultrapassado etc.) como a própria OAB (proposital dificuldade do exame de ordem, elitismo, reserva de mercado etc.).

Parafraseando um velho ditado do nosso entorno cultural (?Em casa que falta pão todo mundo briga, mas ninguém tem razão?) parece-nos razoável afirmar que cada um dos envolvidos diretamente nessa discussão tem sua parcela de culpa. E talvez o fenômeno tenha mais culpados: as famílias, a comunidade, o poder público, as elites dirigentes, as empresas etc. Todos são cotistas da antiga tragédia educacional brasileira, que vem dificultando sobremaneira a empregabilidade do diplomado.

O exame de ordem, ao qual o diplomado em Direito deve se submeter para conquistar sua possibilidade de profissionalização, embora absolutamente necessário, apresenta alguns problemas. Desde logo, não é um exame nacional. Cada estado adota critérios distintos. É de se lamentar essa política regional (às vezes feudalista), que em alguns Estados se transformou em política clientelista.

Os exames ostentam, em certas ocasiões, alto índice de discussão. A elaboração das provas, muitas vezes, peca pelo excesso ou por omissões. Até mesmo erros vernaculares primários são encontrados (uma prova recente da OAB falava em ?estrupo!?, duas vezes). A correção das provas segue, em muitas oportunidades, critérios exageradamente subjetivos. Corporativismo, reserva de mercado, elitismo etc. são censuras correntes contras as OABs, que criticam as faculdades mas também não têm conseguido fazer com que seus integrantes sejam reconhecidos satisfatoriamente. A falta de confiança da população no advogado ainda é muito grande. Menos da metade da população (48%) confia neles (Ibope, pesquisa realizada entre 18 e 22 de agosto de 2005).

A culpa pelo contestado ensino jurídico no Brasil, entretanto, não pode ser atribuída exclusivamente às faculdades ou às OABs.

A qualidade (o nível) do aluno que chega ao curso superior é muitas vezes deplorável. As faculdades, nesse ponto, têm razão quando reclamam do nível do aluno que elas recebem.

O Brasil praticamente universalizou a educação fundamental (faixa etária de 7 a 14 anos): 97% estão na escola. Mas é grave a situação do ?antes?, do ?durante? e do ?depois? do ensino fundamental, ou seja, do ensino infantil (até os 6 anos), dos que chegam à 8.ª série e do ensino médio (faixa etária de 15 a 17 anos).

Wanda Engel afirma: ?Ainda não nos conscientizamos de que uma criança não nasce aos 6 anos de idade e de que a primeira infância é o período mais importante na formação dos seres humanos. Nessa fase se formam 75% das sinapses neurológicas e se constroem os fundamentos da nossa representação simbólica do mundo? (O Estado de S. Paulo de 07.11.06, p. A2).

Impõe-se considerar, de outro lado, que apenas 57% dos alunos do ensino fundamental chegam à 8.ª série. Em relação ao ensino médio, enquanto no Brasil somente 14,4% completam esse nível de estudo, na Índia o percentual é de 28,2%, na China é de 45,3%, Coréia do Sul é de 55,2%, no México é de 37%, no Chile é de 35,7%, na Argentina é de 31,1% etc. Cinco milhões de jovens brasileiros, entre 15 e 17 anos, não estão freqüentando nenhum tipo de escola. No que diz respeito à qualidade desse ensino médio, apenas 4,4% dos alunos conseguiram alcançar em matemática a média dos países da OCDE; em leitura, apenas 11%. A competitividade global do Brasil vem caindo a cada ano: de 1990 a 2004 passamos da 8.ª para a 14.ª posição entre as maiores economias mundiais (Wanda Engel, O Estado de S. Paulo de 07.11.06, p. A2). Mais de 50% dos adultos no Brasil são analfabetos funcionais (?Brasil, o Estado de uma Nação, Ipea, 2006).

É preciso reconhecer, de outra parte, que muitas vezes acadêmico do ensino superior chega à universidade preparado, mas se transforma no grande responsável pelo seu insucesso educacional. Oportunidades lhe são oferecidas (ou seja: o ensino muitas vezes é bom), mas ele o que deseja mesmo é ser protagonista de uma ficção. Há alunos que durante cinco anos enganam os outros (pais, parentes etc.) e a si mesmos. A culminância do engodo acontece quando ele compra, via internet, o trabalho final de conclusão do seu curso – cf. Folha de S. Paulo de 01.07.02, p. C12.

Uma vez diplomado chega a realidade, isto é, chega o dia em que ele tem que definir seu destino, sua profissão, seu futuro e, agora, não tem mais como enganar ninguém. Esse é o dia do desespero e também o dia de começar o jogo (da vida) pra valer! Não é incomum o aluno afirmar: só depois de formado é que fui estudar Direito seriamente!

Conclusão: o problema do ensino jurídico não reside só no output (na saída) do sistema, está também no imput (na entrada). O aluno vem muito mal preparado (às vezes). Freqüentemente sai da faculdade sem suprir (em sua integralidade) essa deficiência precedente.

No que se relaciona com as faculdades caberia, desde logo, afirmar que o problema (por incrível que pareça) não é quantitativo (já temos mais de mil faculdades de Direito aprovadas pelo MEC; 1.004 em novembro de 2006), senão qualitativo (qualidade do ensino).

Quanto ao aspecto quantitativo cabe considerar o seguinte: apenas 11% da faixa etária universitária estão cursando uma faculdade no Brasil. Esse percentual é muito baixo quando comparado com outros países (Argentina quase 20%, Chile 38%, Coréia do Sul mais de 60% etc.). Conclusão: temos poucos alunos nas faculdades. Conseqüência: não estamos formando mão de obra qualificada que possa aumentar a chance de empregabilidade e atender a demanda exigida pelo mercado. Comparativamente, são poucos os alunos que estão estudando no Brasil (ensino médio e nível superior).

No que diz respeito à qualidade do ensino jurídico no Brasil parece oportuno sublinhar que ele se acha submetido a pelo menos quatro crises que ocupam o centro da questão da empregabilidade do profissional dessa área. São elas: (a) científico-ideológica, (b) institucional, (c) metodológica e (d) pedagógica.

Crise científico-ideológica

A primeira relaciona-se com o paradigma científico (bastante equivocado) do qual se parte. O mundo globalizado (e conseqüentemente concorrencial) exige de todos nós, na atualidade (cada vez mais), conhecer e dominar três ordenamentos jurídicos distintos, que são: o constitucional, o internacional e o legal. Esses três ordenamentos jurídicos, com freqüência, apresentam antagonismos que não são de fácil solução. O Estatuto de Roma (1998), que criou o Tribunal Penal Internacional (e é competente para julgar crimes macro-políticos como genocídio, crimes de guerra etc.), pode ser citado como um exemplo (dentre tantos outros) desses antagonismos e aporias. Nem todas as garantias asseguradas nas constituições internas foram contempladas no referido Estatuto que, aliás, prevê uma série de institutos totalmente conflitantes com essas Cartas Magnas (prisão perpétua, entrega do nacional, relativização da coisa julgada etc.).

Nas Faculdades de Direito, entretanto, nem sempre esses distintos ordenamentos jurídicos são ensinados. Não é incomum que o estudante de Direito conclua seu curso tendo apenas noções rudimentares (quanto as tem) sobre a necessária articulação entre tais níveis normativos. A prioridade, no ensino jurídico, é dada para o plano da legalidade que, de acordo com o positivismo legalista (formalista), seria o único objeto da ciência jurídica.

Esse modelo kelseniano (ou positivista legalista) de ensino do direito, consoante Ferrajoli (Derechos y garantias, Madrid: Trotta, 1999, p. 15 e ss.), confunde a vigência com a validade da lei, a democracia formal com a substancial, não ensina a verdadeira função do juiz no Estado constitucional e garantista de direito (que deve se posicionar como garante dos direitos fundamentais), não desperta nenhum sentido crítico no jurista e, além de tudo, não evidencia com toda profundidade necessária o sistema de controle de constitucionalidade das leis.

Esse equívoco científico decorre do pensamento do Estado Moderno, da revolução francesa, do código napoleônico, onde reside a origem da confusão entre lei e Direito; os direitos e a vida dos direitos valeriam pelo que está escrito (exclusivamente) na lei, quando o correto é reconhecer que a lei é só o ponto de partida de toda interpretação (que deve sempre ser conforme a Constituição). Deriva também da doutrina positivista legalista (Kelsen, Bobbio, Schmidt etc.) que entende que toda lei vigente é, automaticamente, lei válida.

A lei pode até ser, na atividade interpretativa, o ponto de chegada, mas sempre que conflita com a Carta Magna perde sua relevância e primazia, porque, nesse caso, devem ter incidência (prioritária) as normas e os princípios constitucionais. A lei, por conseguinte, foi destronada. Mesmo porque, diferentemente do que pensava Rousseau, o legislador não é Deus e nem sempre representa a vontade geral, ao contrário, com freqüência atua em favor de interesses particulares (ou mesmo escusos).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-Geral do IPAN -Instituto Panamericano de Política Criminal, Consultor e Parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais www.lfg.com.br.

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