ECA – a intervenção na tragédia (I)

Ao comentar o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA — e refletir acerca da efetividade do novo ordenamento jurídico brasileiro sobre as crianças e adolescentes, lembro-me do episódio ocorrido recentemente na Chácara dos Meninos de Quatro Pinheiros. Projeto coordenado pelo Fernando, lá se realiza um trabalho extraordinário com meninos de rua daqui de Curitiba. Eu participava de um almoço, pois um dos objetivos do Projeto é primeiro dar identidade às crianças e adolescentes que são, até então, conhecidos como pivetes, trombadinhas, pessoas de natureza perversa, de má índole. Lá passam a ter nome, passam a ser identificados por um nome, pois a identidade é o passo inicial para se estabelecer um programa de vida para eles. Mas além do projeto de vida se quer também estabelecer o vínculo familiar dessas crianças e adolescentes que vivem na rua. Então, lá se fazia um almoço com as famílias dessas crianças e adolescentes dando um espaço para a reintegração das crianças e adolescentes com a própria família. Foram empresários que resolveram bancar esse almoço. Era uma Paella e foi um exagero. Acho que poderiam comer três vezes mais pessoas das que compareceram lá diante da fartura de comida que foi feita para a recepção das famílias das crianças e adolescentes. O que me chamou a atenção é que após o almoço, haviam panelões ainda cheios de comida. Após o almoço percebi que crianças passavam com saquinhos plásticos e iam remexer o lixo e colocavam o resto da comida em saco plástico para, possivelmente, levar para casa. Isso é a tragédia de uma sociedade cujas crianças e adolescentes mesmo diante da abundância saiam à cata do lixo porque o projeto de vida delas ainda é esse de sobreviver através da esmola degradante, através do lixo das cidades que se pretendem de primeiro mundo.Pensei comigo que embora o banquete da Constituição Federal, embora o banquete do Estatuto da Criança e do Adolescente, infelizmente a população infanto-juvenil ainda vive das migalhas das políticas públicas. Eu não diria do lixo, mas do resto das políticas públicas.

Sobre o tema vou atacar dois aspectos: o primeiro é a existência do novo ordenamento jurídico brasileiro da infância e da juventude que é algo absolutamente positivo. Se a situação da infância e da juventude brasileira é essa de tragédia, de cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes carentes e abandonados, imagine se não tivéssemos a lei a favor delas. Imaginem como era a época da vigência do Código de Menores onde não se previa expressamente nenhum direito para as crianças e adolescentes e pior, nenhum dever do Estado em relação às Crianças e Adolescentes. Então, o dado positivo é que a partir da absorção dos ditames da doutrina da proteção integral, tendo como marco histórico a Constituição de 1988, passou-se a reconhecer as crianças e adolescentes como sujeitos de direito, como sujeitos dos direitos fundamentais da pessoa humana e também como sujeitos de direitos específicos decorrentes da condição de pessoas em peculiar fase de desenvolvimento. A tese fundamental da doutrina da proteção integral é no sentido de que incumbe à lei assegurar às crianças e adolescentes a possibilidade do exercício desses direitos fundamentais da Infância e da Juventude. Quer dizer, nós saímos de uma legislação que não previa direito algum para as crianças e adolescentes e passamos a adotar uma doutrina que tem como regra absoluta essa: a lei deve assegurar às crianças e adolescentes a possibilidade do exercício dos seus direitos elementares. Em razão disso, a doutrina da proteção integral, todos sabem, é a mesma que dá suporte teórico a todos os documentos internacionais da área da Infância e da Juventude, a Declaração dos Direitos da Criança, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de Normas para administração da justiça terminal, enfim, todos os documentos internacionais relativos à área da Infância e da Juventude têm como suporte teórico essa mesma doutrina da proteção integral. No Brasil, ela vai se materializar no seu momento mais importante através da regra do artigo 227 da Constituição Federal que estabelece ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar às crianças e adolescentes com absoluta prioridade os direitos à vida, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, à saúde, à educação, à profissionalização, ao lazer. Enfim, o texto constitucional faz por enunciar, mesmo que genericamente, todos esses direitos que são fundamentais da Infância e da Juventude. A observação histórica que me parece importante é essa regra do artigo 227 que chega à Assembléia Nacional Constituinte através de uma emenda popular. Foi pela mobilização da população, foi pela mobilização das pessoas que já embandeiravam a luta pela Infância e Juventude através do asseguramento dos direitos que se faz uma emenda popular, que se apresenta uma emenda popular com mais de dois milhões de assinaturas e que, ao fim, acaba acolhida pelo legislador constituinte. A partir da regra do artigo 227, o Código de Menores resta absolutamente inapto para atender a esta nova conformação constitucional de reconhecer as crianças e adolescentes não mais como meros objetos de intervenção do Estado, mas sim como sujeitos de direito e daí a necessidade da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente como uma forma de regulamentação do preceito constitucional estabelecido no artigo 227. A elaboração do Estatuto vai se dar exatamente nessa perspectiva, de especificar então, de detalhar aquilo que estava genericamente previsto na Constituição de 1988 e por outro lado, criar um sistema de garantia para esses direitos.

Então, a minha observação aqui na participação deste evento é exatamente na análise desses dois aspectos: a existência de um novo ordenamento jurídico e a existência de um sistema de garantia para esse novo ordenamento jurídico. O legislador do Estatuto vai especificar, vai detalhar cada um daqueles direitos genericamente indicados no artigo 227: o que significa o direito à vida, o que significa o direito à saúde, à educação, enfim, cria, ao mesmo tempo, mecanismos para garantir a efetivação desses direitos. Nesse primeiro aspecto a observação que eu gostaria de fazer é no sentido de que a lei por si só não altera a realidade social. O fato de estar em vigência a partir da publicação no Diário Oficial da União uma determinada lei, isso não significa absolutamente nada no que diz respeito à garantia de modificação da realidade social. A lei não muda a realidade social, o que muda a realidade social é o exercício dos direitos que estão previstos na lei. Daí a primeira observação que eu quero fazer é no sentido da necessidade para o exercício que as pessoas conheçam a lei. Acho que a batalha que nós estamos perdendo diuturnamente é essa. É a batalha da não divulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Aliás, eu vi uma vez o Emílio falando e ele usa uma expressão do Uruguai que diz que nós não estamos nem perdendo a batalha, não estamos nem dando batalha, quer dizer, não está nem havendo a batalha, porque nós estamos imóveis, imobilizados em relação à busca da difusão adequada do Estatuto da Criança e do Adolescente. Como é que nós vamos pretender que a mãe cujo filho mora na Vila Pinto, que não tem acesso a uma creche, por exemplo, que ela vá se utilizar do Estatuto da Criança e do Adolescente se ela não conhece a lei e, pelo contrário, porque nós não estamos nessa batalha. A visão que a sociedade tem hoje do Estatuto da Criança e do Adolescente é absolutamente contrária à lei. Criou-se, pela difusão inadequada, pela ignorância ou pela má fé, criou-se uma aversão. A população assume hoje, exatamente aqueles que poderiam utilizar o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento para garantia de direitos e para modificação da realidade social sua e dos seus filhos, postura de aversão ao Estatuto da Criança e do Adolescente porque o que se difunde acerca da lei é de que a lei é inadequada à realidade brasileira. Nossa lei não vai dar certo porque é uma lei de primeiro mundo para se aplicar num país de segundo mundo, porque o policial diz que agora com o Estatuto ele está de mãos atadas e de que o adolescente pode agora praticar o ato infracional que quiser porque ele não pode agir porque a lei protege a prática do ato infracional. No sistema educacional, os professores estão dizendo que o Estatuto rompeu com as relações de autoridade dentro do sistema e que agora os alunos podem fazer o que quiser e os professores não podem responder a isso. Os pais estão dizendo que em razão do Estatuto eles perderam a autoridade em relação aos seus filhos. Está todo mundo contra! Há uma visão deformada da lei que se amplia dia a dia. Nós nos reunimos aqui hoje com 100, 200 pessoas, discutimos o Estatuto, mas nesse exato momento um repórter policial equivocado está repassando uma informação para a população, não mais para 100, 200 pessoas, mas para seiscentas ou seis mil pessoas, uma visão equivocada do Estatuto da Criança e do Adolescente que faz, então, criar não essa idéia de querer conhecer a lei para utilizar dos preceitos que ela estabelece, dos direitos que ela garante, mas cria uma posição de aversão à lei. “Eu não conheço e sou contra”, aliás, é a coisa mais comum você participar de debates com pessoas que são contra o Estatuto, tem posições contrárias a determinadas regras do Estatuto e elas desconhecem totalmente.

Olympio de Sá Souto Maior Neto

é procurador de Justiça do Paraná e coordenador estadual da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Juventude

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