Direitos e cidadania nas transfronteiras do Mercosul

O Mercosul é um ente internacional supracional. Por supranacionalidade entende-se o poder de criação de uma instituição que transcende a esfera dos Estados soberanos, originando-se, porém, na autorização desses em ceder soberania.

Como a União Européia, o Mercosul surge como uma tentativa de maior integração econômica e social entre os Estados do cone sul, donde resultaram as primeiras normas de regulação conjunta, entre as políticas públicas do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

Quanto à validade interna, nos países membros, das regras do Mercosul, deve-se observar que no Brasil se aplica a chamada Teoria Dualista. A Teoria Dualista reconhece a existência de duas ordens jurídicas diversas: a ordem jurídica nacional e a ordem jurídica internacional. Pela Teoria Monista, ao contrário, há a existência de somente uma ordem jurídica, congregando as regras internas, nacionais, e as regras internacionais, num único ordenamento jurídico.

Como exemplo, na União Européia, o Direito Comunitário Europeu é um exemplo de aplicação da Teoria Monista, por meio da qual há interação entra a ordem jurídica comunitária e a ordem jurídica interna dos países membros, regulada e efetivada pelos julgados do Tribunal de Justiça Europeu, diferentemente do que ocorre hoje no Mercosul. Desse modo, uma regra criada pela União Européia, passa a valer imediatamente nos estados membros após a sua publicação.

Quanto à Teoria Dualista, atualmente adotada pelo Brasil, uma regra externa, internacional, para valer internamente, deve ser recepcionada e estar em conformidade com o ordenamento jurídico pátrio. Isso ocorre somente com a emissão de um decreto legislativo pelo Senado Federal, especificamente para esse fim, momento em que a regra passa a ser vigente e válida no Brasil.

Um exemplo de aplicabilidade da Teoria Dualista no Brasil ocorreu na criação da regra do Mercosul, determinante da implantação do Imposto sobre o Valor Agregado ou IVA, que contraria os dispositivos constitucionais quanto à competência tributária da União, dos Estados e dos Municípios brasileiros. Nesse caso, tal estipulação, por ferir a competência tributária dos Estados e Municípios, não pode ser recepcionada no Brasil, em face de sua contrariedade à atual Constituição Federal brasileira. Assim, nos moldes constitucionais atuais, não será adotado no Brasil o IVA, como já ocorre na Argentina e Uruguai.

Desse modo, enquanto imperar a Constituição Federal brasileira de 1988, a validade do conjunto de regras de Direito Internacional Público, que visam a integração de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul, sempre dependerá da análise e recepção pelo Estado brasileiro, para ter validade interna.

Quanto à cidadania no Mercosul, dentro do conceito jurídico de cidadania, não há direito de voto, pois ainda não há como o cidadão eleger ou ser eleito para figurar nas estruturas supranacionacionais do Mercosul, como já ocorre no Parlamento Europeu da União Européia.

Por outro lado, no contexto sociológico de cidadania, a partir do princípio básico mercosulista de preservação do Estado Democrático de Direito, assegura-se a todos os indivíduos do cone sul, os direitos fundamentais, sociais, culturais, ambientais, patrimoniais expressos na Constituição Federal brasileira. Outrossim, aos estrangeiros regularmente residentes no Brasil também são assegurados direitos e garantias fundamentais previstos, tanto no Tratado de Assunção, quanto em outros tratados perante os quais o Brasil foi signatário e procedeu à sua recepção.

Nesse entendimento sociológico do que vem a ser cidadania também estão incluídos os direitos trabalhistas e demais direitos sociais, pois, nesse caso, o cidadão a ser considerado é todo ser humano e não só aquele que elege e tem direito a ser eleito.

Quanto à integração e criação de novos direitos aos povos do Mercosul, deve ser observado que esse é um processo político contínuo, que requer a adequação do status de soberania dos Estados, respeitado o ordenamento jurídico brasileiro em sua atual perspectiva dualista. As dificuldades presentes no Mercosul decorrem de variáveis políticas, econômicas e culturais, a quais estão em caminho de equalização. Deve ser lembrado que o processo europeu de integração remonta aos anos 50, do século XX. É como transformar uma monarquia em república, fato que não se consuma em curto espaço de tempo, ao menos que tal movimento adote bases revolucionárias, totalmente incoerentes com o atual processo democrático e pacífico de união dos povos. Desse modo, o que se requer é tempo, trabalho, mediação e especialmente fraternismo, na integração dos povos do cone sul.

Sergio Rodrigo Martinez é professor adjunto do curso de Direito da Unioeste (MCR). Doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade de Coimbra. Autor das obras Manual da Educação Jurídica e Pedagogia Jurídica (e-mail: contatos@ensinojuridico.com.br).

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