Desconsideração da pessoa jurídica e patrimônio conjugal

Nas hipóteses de uso indevido da personalidade jurídica, o juiz está autorizado a decidir que, os efeitos de determinadas relações obrigacionais, sejam estendidos aos bens particulares dos sócios da pessoa jurídica.

Na seara do Direito de Família, é possível ver-se a aplicação da teoria da disregard (desconsideração)quando se está diante do mau uso da pessoa jurídica em fraude à meação, comportando tal efetivação tanto para o casamento quanto para a união estável, consagrada esta como entidade familiar pelo Texto Constitucional de 1988.

É sabido que emanam da personalização da pessoa jurídica dois efeitos jurídicos: a personalidade própria e a autonomia patrimonial, apartando o que é e o que pertence às pessoas físicas, integrantes do novo ente formado, do que é e do que pertence à pessoa jurídica constituída.

Então, se por um lado trata-se de um velho postulado que separa a pessoa jurídica da pessoa física de seu sócio, estabelecendo patrimônios diversos e responsabilidades dissociadas, por outro, configura-se uma oportunidade ímpar para a utilização indevida do fim societário, prestando-se a sociedade como instrumento de fraude ao interesse de terceiros – aqui, em especial, do cônjuge ou do convivente.

Visualiza-se a hipótese em reflexão para os casos em que, utilizando-se da pessoa jurídica como anteparo da fraude, o cônjuge ou o convivente de má-fé realiza a aquisição de bens em nome direto de uma empresa, ou ainda, transfere maliciosamente os bens, primitivamente pertencentes ao acervo comum, para o acervo da pessoa jurídica.

Neste rumo, na qualidade de sócio da pessoa jurídica – esta a titular de todo o patrimônio pertencente ao casal ou aos conviventes – e antevendo a batalha judicial que está para ser deflagrada, é usual que, quando eleita a via litigiosa, diante da resistência à separação por parte do outro que não vê razão para a ruptura do enlace afetivo, o casamento e a união estável sejam encarados muito mais pelo aspecto comercial ou contratual do que pelo aspecto pessoal ou afetivo, resultando em uma disputa essencialmente mercantilista, onde ganhos e patrimônios são manipulados com vistas a uma partilha desigual, quando não for possível esvaziar completamente a meação do outro, que ainda deseja permanecer acreditando no vínculo relacional – que já se desfeneceu.

Antevendo a batalha judicial, como já dito, o cônjuge ou o convivente – munido da má-fé – pode, às vésperas do deflagrar da disputa e quedando-se silente de seu intento, efetivar a sua `aparente’ retirada da sociedade, num efetivo ato simulado, transferindo a sua participação para outrem – mero presta nome – esvaziando por completo o acervo patrimonial comum, já que este pertence exclusivamente à pessoa jurídica, da qual o autor da fraude já não mais é sócio.

Após dissolvida a sociedade conjugal, retorna o cônjuge ou o convivente à pessoa jurídica e retoma, integralmente, a livre administração dos bens societários que representavam expressiva parcela do acervo comum, os quais permaneceram intocáveis diante dos efeitos jurídicos da personalização.

Esta hipótese configura fraude à meação e pode ser atacada com uso do ditame do art. 50 do Código Civil.

Ainda que a alteração contratual efetivada, privando o parceiro-vítima do exercício de seus direitos no tocante aos bens comunicáveis, por força da entidade familiar constituída com o parceiro-autor da fraude, possa ter atendido integralmente às condições de existência e validade do ato jurídico, e obedecendo à regra da publicidade com o registro da dita alteração, o ato é ineficaz em respeito ao cônjuge ou convivente lesado, já que se está diante de um meio ilícito praticado em desfavor dos interesses e direitos legítimos daquele sobre o acervo e o partilhamento patrimonial constituído por força da união familiar.

O magistrado, nesta hipótese, pode simplesmente ignorar a transação simulada de retirada do sócio-autor da fraude da sociedade, desconsiderando-a no âmbito de sua sentença judicial, e determina que seja computada para a partilha conjugal a participação social preexistente à fraudulenta alienação das quotas sociais, devendo as mesmas serem repostas ao estado anterior ao da evidente usurpação da meação do cônjuge ou do convivente.

A doutrina da disregard, portanto, vem atender a um novo e vigoroso Direito de Família, voltado a um maior comprometimento com a solução eficaz e justa dos litígios familiares, refreando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, quando visivelmente desviada de sua função social, transformando-se em um útil instrumento posto a serviço da fraude à meação do cônjuge e do convivente.

Maria Christina de Almeida

é advogada, doutora em Direito pela UFPR, professora de Direito Civil da Unibrasil, professora da pós-graduação em Direito do Instituto Romeu Bacellar, da Unipar e do ITE, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família-Seccional Paraná.

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